Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma Visita Inesperada



O Sr. Ricardo era um sem-abrigo que há muitos anos vagueava pelas ruas de Lisboa, pedindo esmola nas estações do metro, do comboio, em praças ou jardins e junto aos centros comercias de maior movimento. Aqueles que o conheceram noutros tempos, contam a sua história, a história de uma vida feliz, de trabalho, porém interrompida por uma trágica sucessão de acontecimentos que o arrastaram para a rua, perdendo a família, o emprego e transformando-o num andrajoso, num maltrapilho. Dormia em vãos de escadas, em prédios abandonados, ou junto do calor das montras das lojas, aquecendo-se do frio, ou abrigando-se da chuva. Os seus pertences resumiam-se a um velho colchão de espuma, que ele enrolava a uma trouxa que trazia às costas, e a uma pequena mochila onde guardava os restos de comida que ia surripiando nas traseiras dos restaurantes, ou que os conhecidos lhe iam oferecendo para matar a fome e enganar o seu triste e bizarro destino.

 Os moradores de Queluz, onde o sr. Ricardo morara, contam que uma armadilha bem montada pelos chefes do banco onde trabalhava, passou para ele a responsabilidade do desvio de milhares de euros da tesouraria, culpando-o da falsificação das folhas e documentos da contabilidade. Esteve preso três anos e quando voltou, as finanças tinham-lhe penhorado a casa e feito o arresto dos bens. A mulher vendera o carro para pagar dívidas do jogo em que o sr. Ricardo era frequentador assíduo e pedira o divórcio, tornando tudo isto um peso demasiado grande para a sua frágil saúde. Meio transtornado pela longa estadia na prisão, desaparecera durante muito tempo, mas de um dia para o outro voltara, agora para as ruas, com os pensamentos distorcidos, numa amálgama densa e impenetrável, e fechara-se num mutismo desesperante, ruminando palavras ininteligíveis e desconexas. Vagueava trôpego e cambaleante, ostentando uma barba de várias semanas, perdido em fragmentos de memórias e sonhos de vingança contra quem o empurrara para o abismo.

 Dias e noites a fio, sozinho e esfomeado, levaram-no ao desespero, a um beco sem saída. Numa noite de fim de ano, sentiu que chegara ao limite. Ia terminar com aquilo, tinha que pôr termo a tanto sofrimento. Levantou-se de entre os trapos e cartões e olhou mais uma vez para os que se preparavam para comemorar, para as luzes cintilantes nos interiores das casas, ouviu o tilintar dos copos de champagne. Ouviu gritos e sorrisos abertos de casais felizes. Pensou como seria bom ter o calor dos amigos.Tremendo de frio, dirigiu-se para a linha do comboio e sentou-se junto aos rails. Ouviu o barulho das carruagens ao longe e deitou-se por cima das longas barras de ferro. Estavam frias também. Naquela noite tudo era gelo e frio. Esperou. Vinte, dez segundos, agora só faltavam cinco para que fosse esmagado, trucidado. Chegara ao fim. Mas há uma mão amiga que no último segundo o puxa para trás e o comboio passa a centímetros do sr. Ricardo. Sente um aperto no coração, uma dor aguda no miocárdio e cai para o lado, inanimado, agarrado ao peito. O funcionário que andava ali a fiscalizar as cantoneiras, e que o salvou, repara que o pedinte está a passar mal, que se contorce de dores agarrado ao peito. Chama ambulância que chega num breve espaço de tempo. O sr. Ricardo é ligado ao oxigénio e levado para o hospital.

 Está em paragem cardíaca, tem um enfarte e continua ligado ao oxigénio. Pressente a morte. Está do outro lado, ultrapassou os domínios do mundo credível; entra num turbilhão de impulsos negativos, escuta sons abafados - patas peludas de tarântulas que lhe batem à porta, num vórtice de picadas agudas e abraços como tenazes que o arrastam para baixo, para as profundezas dos abismos. Começa a dançar a valsa lenta da morte…

 Mas algo acontece numa fração de segundos. Abre os olhos e começa a sentir uma réstia de esperança, aos poucos as dores vão se dissipando e experimenta uma nova consciência. Há focos de luzes intensas à sua volta e tudo é muito confuso. De um ponto longínquo, de uma fonte poderosa emana um jorro de luz muito brilhante, de um azul transparente, quase celeste e saltam miríades de cristais que envolvem todo o corpo e o cobrem de calor; de repente não sente mais frio nem dores no peito. É levado por braços longos e macios que o colocam sobre uma rocha suave como uma almofada, leve e aconchegante como lençóis de gaze limpa e reconfortante. Uma sensação de prazer, de bem-estar incrível percorre-lhe o corpo. Percebe que entrou através de um portal cósmico, para uma quinta dimensão. À sua volta, acariciando--o e tocando-lhe o corpo com dedos finos e muito, muito compridos estão criaturas alienígenas, vindas de camaras tridimensionais, como hologramas que se reproduzem milhares de vezes, replicam infinitamente a sua própria imagem. Os seus olhos são ternos e a suas vozes fraternas. Falam-lhe aos ouvidos, dizem-lhe coisas que ele a principio não entende, mas aos poucos compreende que lhe estão a reprogramar o chip do córtex, a unir-lhe os fragmentos de memória e a dar uma nova consistência ao seu ego, a torná-lo novamente um homem capaz. Sente-se bem do coração, como uma criança forte e divertida. Está de bom humor, satisfeito como há muitos e muitos anos não estava. Tem a doce sensação de que o mundo é um lugar ótimo para se viver, já não pensa em vinganças e então retira os tubos que lhe entram pelas narinas e pela boca, os elétrodos que lhe monitorizam o coração. Levanta-se da marquesa e mais ninguém o consegue segurar. O sr. Ricardo pede uma casa de banho, diz que quer tomar um duche. Lá encontra uma enfermeira que vendo a sua simpatia e afabilidade acha muito estranho aquilo tudo, mas pressente que está em presença de algo insólito e bizarro. Olha para o sr. Ricardo e nota nele uma vontade tão grande e uma força tão poderosa que o impele para a vida, que o ajuda e o conduz para as arrecadações nas caves, onde descobre umas roupas antigas, mas esterilizadas e lhe oferece para se vestir.

 Há dias passei por um centro comercial e olhei para o interior de um pequeno café. O sr. Ricardo estava sentado á mesa, como um cidadão normal; bebia café e comia um croissant. Já não tinha barba e os cabelos estavam limpos e aparados, modestamente vestido, mas asseado. Lia o caderno de anúncios de emprego de um jornal da cidade. Via-se que um novo espírito percorria o corpo e a mente do Sr. Ricardo. Os seus olhos azuis estavam brilhantes e já não se apagavam olhando permanentemente para o vazio. Agora, quando olhava para o infinito distante sorria e sentia novamente aquelas mãos macias e fraternas que um dia o levaram para uma quinta dimensão e o trouxeram de novo à Terra, feito um novo homem com uma nova vontade de viver.


José Luis Ferreira
Dezembro de 2011

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Uma História Comum (1)

                                                                                                                                                                                                                                                           
Nota do autor: Esta é uma história de ficção. Nada disto aconteceu. É tudo fruto da minha imaginação. A partir de um ponto qualquer da História Universal e do percurso do Homem, desenvolvi algumas ideias que tinha latentes e construí esta peça sobre a violência e a crueldade medievais.
Nem tudo o que os relatos oficiais nos contam é verdade. Também não sabemos como realmente as coisas aconteceram. Então, podemos extrapolar, ficcionar, imaginar um acontecimento isolado e criar algo sob uma perspetiva diferente, ou simplesmente considerá-lo plausível, mais próximo da realidade.
Quero deixar um aviso a quem se sentir tentado a ler. Há relatos nestas páginas que poderão afetar as consciências mais sensíveis. Se esse é o seu caso, então não leia, p.f. Bem haja J..L.F.


                                                 A Chegada


Uma bala da escopeta vazou-lhe os intestinos e o indígena logo ali ficou caído na areia da praia, quando olhava atónito para a pequena embarcação carregada de homens brancos armados com aqueles utensílios compridos e esquisitos, que largavam sobre eles pedaços de metal quente e penetrante como grossas agulhas, idênticas às daqueles arbustos com que eles lutavam diariamente quando entravam selva adentro, à caça de animais e plantas comestíveis.
O segundo indígena quis lançar a comprida lança aguçada, de metal pontiagudo, contra os soldados de rostos ameaçadores, hirsutos, com roupas de couro trabalhado, armaduras e elmos de ferro, mas também ele ficou caído, atingido pela segunda descarga de chumbo grosso.
Descansaram os marinheiros, abrindo alas para o frade jesuíta, que poisou as suas benditas e virginais sandálias pela primeira vez nas terras inóspitas de África, onde o bruto gentio, arredio da mão divina, estava ali para receber a palavra do Senhor de modo a largar a condição animal e tornar-se, durante os próximos séculos, filho de Cristo e entregue para sempre nas mãos de Deus.
Chegados à praia, logo ali foi aberta cova funda onde o frade espetou uma bela cruz de dois metros de altura, esculpida em madeira nobre de carvalho e ornamentada em baixo relevo pela história e pelos feitos cristãos e generosos da Ordem de Jesus, em terras distantes e hostis, do Brasil às Índias misteriosas. Por Deus, pelo Papa e pelo Reino, podia ler-se em cima de tudo. Ao lado, dois metros à direita, o sólido marco oficial da nação, ostentando o brasão e as armas da Casa Real. Ajoelharam-se os quinze homens e foi rezada uma pequena oração, agradecendo aos anjos e à Virgem, a graça da descoberta.

Havia dois mortos no areal. O grupo desceu das embarcações e atrás da primeira barca amarou mais uma e de seguida mais duas, três, depois eram cinco, sete, e após algumas horas estava a linda enseada pejada de homens sujos e esfomeados, de comportamento agressivo e brutal e de chatas escuras de nogueira. No mar, algumas centenas de metros adiante, fundeavam três caravelas capitaneadas por D. Rodrigo González Navarro, almirante de Sua Santidade o Papa Benedito Sétimo, ao serviço de Sua Majestade, a Rainha María Stewart, a Almejada, inglesa do seu primeiro marido, esposa do Conde de Salamanca y Vigo, príncipe consorte de Sua Alteza Real.

Os dois moribundos revolviam-se com dores, golfavam ampolas de sangue quente, mas os marinheiros olhavam para os fuzis, carregavam-nos de pólvora e discutiam a localização daquelas terras, à espera da embarcação principal, que traria o comandante, D. Rodrigo González, corsário de todos os mares e oceanos, comandante de naus e caravelas, à descoberta de novos e admiráveis mundos.

Finalmente desceu D. Rodrigo Navarro, de rosto preocupado mas feliz, por detrás de uma barba de semanas, magro, com a comprida espada balançando à cintura, a ponta da bainha tocando o botim ou roçando a terra desconhecida dos negros, seguido de perto pelo frade, que, de olhos no chão, lhe segredava conselhos e, de mãos unidas e dedos apontando para os céus, rezava e acariciava o terço entrelaçado entre as falanges. Mas finalmente todos brindaram com o vinho escuro tirado dos bornais e dos cântaros, todos riram alto e um ar de felicidade terrena pairou sobre o entardecer flamejante dos céus de África.
Prontamente foi enviado um grupo de reconhecimento para o interior da floresta, ao mesmo tempo que um outro abria uma clareira, a golpes de espada e machados, depositava equipamentos e víveres, acendia fogueiras e montava a tenda principal que albergaria D. Rodrigo Navarro, o destemido capitão.
Os dois curiosos gentios jaziam na praia, os corpos retorcidos. Morreram debaixo de estertores e gemidos medonhos. Foram afastados e empurrados para longe do caminho, para lá da baía, para debaixo dos juncos. Mas quando a noite se fez sobre a terra e os homens das caravelas já cantavam bêbedos junto dos fogos crepitantes, cinco guerreiros rastejavam assustados, por entre as palmeiras, no meio das raízes húmidas e lentamente recolhiam os corpos ensanguentados dos companheiros, com as vísceras e a cara desfeita pelos tiros de curta distância. Levaram-nos para o fundo da floresta, andando toda a noite. Armados de arcos, lanças e pequenos punhais de ferro atados à cintura, penduraram nas costas os corpos dos compatriotas inertes e atravessaram a mata, rumo aos longínquos sinais de fumo e à povoação de cabanas construídas de palha, troncos de árvores e barro amassado. De madrugada, aos primeiros raios de sol, entregaram os corpos às famílias e foram direitos à casa do chefe da aldeia, que já estava a pé tendo ouvido a história dos cinco homens. O pai, o ancião da tribo, ouviu também e lembrou-lhes a premonição que anunciava para breve o fim dos dias de paz, que haveria muitas mortes daí para o futuro e estava agora a começar para eles a era dos tormentos e dos padecimentos atrozes. Nada mais disse e cansado, curvado sobre o cajado, entrou para a pequena cabana de palha seca, a ruminar os seus pensamentos e a cogitar novas profecias.
Daquele momento em diante começariam os rituais fúnebres tradicionais e depois dar-se-iam os funerais. No silêncio da alvorada, eclodiram os choros, as preces ao Criador e soaram os primeiros tambores, como uma trovoada que antecedesse o mau tempo - o pior dos vendavais, a mais terrífica das tempestades! Durante três dias e três noites os batuques não pararam. Em pouco tempo, os povos bakongos, souberam que algo de muito grave se estava a passar. Muitos quilómetros para lá da povoação, os autóctones abriram as bocas de espanto pelo que ouviam. Sabiam de histórias e lendas de homens estranhos vindos do mar, em navios poderosos, que lançavam fogo e destruição e capturavam os seus irmãos, mas só agora sentiam o perigo tão perto.
Para chegar àquele lugar do mundo, bastava aos navegadores descer para Sul, vindos dos portos de França, Espanha e Portugal, em direção às Canárias, com o vento de feição, empurrando as velas e navegar, ladeando a costa, até ao Golfo da Guiné, passando pelo Gabão, Congo, Angola e dando de caras com a Namíbia e o Botswana e depois alcançar o Cabo. Eram reinos desconhecidos, terras sem nome e escassamente habitadas, onde a malária, a febre tifoide e outras epidemias dizimavam povoados inteiros e os navegadores, que se aventuravam por aquelas paragens. Muitos meses se passavam até que encontrassem vivalma ou portos de abrigo, onde pudessem reabastecer-se de géneros. Os últimos postos avançados de comércio que encontraram, situavam-se nas Gran Canárias, onde havia um aquartelamento de europeus, traficantes de escravos e vendedores de víveres para os indígenas, com um pequeno embarcadouro, e aí puderam fazer algumas trocas. De momento estavam na imensa bacia entre o Gabão, os Reinos do Congo e o norte de Angola onde desfrutavam da bonomia do mar e do calor tropical.
Por esses dias, a acalmia e o sossego reinavam naquelas águas. O tempo era bom, pairava no ar uma tepidez e uma quietude tão intensa, palpável, que quase se podia tocar ou ouvir, como musica, por vezes estranha, singular. Aos poucos, metodicamente, o sol quebrava e desfazia as partículas de orvalho acumulado durante a noite. A serenidade era absoluta. Mas anteriormente, durante semanas a fio, houve acontecimentos que deixaram os nativos estupefactos. Primeiro, foram duas canoas que de repente se viraram e por mais força que fizessem, por mais que homens e crianças ajudassem, nada as fazia voltar ao normal. Não tinham furos nem rombos, o casco estava completamente fechado, mas elas, contrariando as leis da física, mantinham-se com a garganta virada para baixo, como se quisessem engolir toda aquela água. Doutra vez, duas palmeiras sólidas, saudáveis e robustas caíram de repente prostrando-se no chão, como que a chamar a atenção daqueles amigos, que se protegiam sob a sua sombra, para algo que estava prestes a acontecer. As mulheres queixaram-se que as panelas se recusavam a receber alimentos, jogando tudo para fora, virando-se quando estavam ao lume; houve fogos e lumes que inusitadamente se apagaram. Os homens andavam assustados e intrigados. As mulheres já não sabiam como ferver os caldos preparar a mandioca. E os animais da aldeia eram inexplicavelmente encontrados a dormir, atacados de uma sonolência profunda, num estado cataléptico, as galinhas e os porcos encostavam-se em qualquer lugar e durante horas ficavam imóveis, em letargia total como nunca ninguém viu.
Mas os dias corriam tranquilos, o quotidiano e os hábitos de décadas mantinha-se imutáveis passando de pais para filhos. Os homens da terra que se dedicavam às lides da pesca, desciam até à praia, mal o dia clareava, empurravam as canoas de encontro às ondas, acompanhados dos filhos, vagueavam pela orla e ensinavam-lhes as artes do mar, lançando as redes e anzóis, com alegria e despreocupação, entre gritos de incentivo e gargalhadas de satisfação.
Mas há dois dias que as canoas haviam desaparecido e com elas todos os vestígios dos utensílios da pesca. Desapareceram as pequenas velas remendadas e comidas pelo tempo, que por vezes apetrechavam as compridas pirogas, os remos, as redes e qualquer sinal da sua presença. Quando as caravelas foram avistadas ao longe, os habitantes da praia, amedrontados, recolheram para o interior da floresta, para as suas casas e esconderijos, onde ficaram à espera que os estranhos partissem.
De dentro das naus, muitos pares de olhos espreitavam pelas escotilhas, tentando perceber onde estavam. Na caravela principal, a mais imponente, com o nome da rainha bordado a ouro na proa, dois canhões de ferro e bronze fundido, carregados de pólvora, viravam as bocas, nas amuradas, para terra e para o mar, ameaçando destruir qualquer inimigo que lhe ousasse enfrentar.
Descendo do convés por uma estreita escada em caracol, chegava-se ao porão, e um cheiro fétido atacava os sentidos. Vários homens suados e esfarrapados, na maioria apenas com um pano a cobrir as partes, conversavam descontraídos, guardados por um soldado de olheiras profundas, com o fuzil apontado, a desfalecer de cansaço e incomodado pelo calor, pelos mosquitos e pela humidade do ar. Dariam um bom lucro para D. Rodrigo, o corsário sem medo. Alguns bebiam de um sujo alguidar de latão, donde retiravam um líquido viscoso, em que boiavam restos de peixe e batatas, com a ajuda de uma concha de cabo comprido e enchiam uma pequena cabaça que levavam para o assento perto dos remos. Eram escravos, homens prontos para serem vendidos e mudados de dono, no primeiro porto, onde aparecesse algum traficante negreiro. Entre eles estavam dez robustos índios paraguaios capturados noutro porto, por outro bando de aventureiros, e traficados nas terras que os portugueses chamavam de Vera Cruz, no interior do Mato Grosso, na fronteira com o Paraguai, e aptos para serem negociados também.
Dormiram repousados e já a manha ia alta, estando os homens a aquecer o café, a comer broa e papas de milho, a arrumar as camas improvisadas e à espera de ordens de D. Rodrigo González, quando este saiu da tenda, os suspensórios caídos sobre as ancas, descalço, imundo, babando e exalando a vómito, vestindo ceroulas amarelas bastante usadas e gastas. Esbugalhado de tanta luz que lhe feria a vista, mas excitado pelo dia que o esperava depois de muito tempo de inatividade, ia finalmente ter ação. Ouviu-se a sua voz que gritava para os marinheiros:                                                                                      
- Los negros! Los negros! Donde están los negros? Vamo-nos a ellos! Avanzar, avanzar!
Com a biqueira da bota, D. Rodrigo González pontapeou uma pequena fogueira que ardia à porta da sua tenda de campanha; empurrou a ordenança que fazia guarda à entrada e virou-se decidido para dentro, onde foi vestir o gibão da armada, a calça de cabedal castanho cozida à mão, os enfeites de metal e o capacete de pontas. Com a pistola de cano duplo dentro de um colete apertado, deixando ver o cabo de madrepérola e o percurtor curvo de ferro, retirou a espada da bainha, limpou à calça restos de sangue seco que ainda se agarravam à lamina, encaixou-a dentro da fina proteção de prata, com desenhos e dedicatórias da noiva prometida e voltou a prendê-la ao cinto. Tomou o café rapidamente, bebeu um gole de aguardente e, balançando o sabre junto à coxa, o Almirante saiu em direção aos homens que já se postavam de pé, prontos para a caminhada. Sabiam que o dia seria longo.
Frei Bartolomeu Bonifácio Benevides, como era o seu nome verdadeiro nos registos oficiais do governo civil de Salamanca, servo de Deus e da Ordem de Jesus, manteve-se no acampamento, sempre acompanhado por dois marinheiros armados, tendo algumas horas depois regressado ao convés da caravela para descansar e pôr as suas preces em dia. Almoçou tranquilamente um ensopado de carneiro, regou-o com o vinho que trouxera da abadia e entre salmos e escrituras passou o resto do dia concentrado nas leituras do livro sagrado.
Nesse dia os soldados palmilharam vinte quilómetros mata adentro, de espingardas aperradas, prontas para o disparo, mas não viram ninguém. Ao longo da caminhada, dezenas de vezes foram observados e seguidos por indígenas que caçavam e colhiam ervas para a alimentação. Mataram dois veados, que esfolaram e cozinharam no acampamento, no regresso e ao fim do dia comeram como há muito não faziam. Revezaram os guardas das caravelas, e estes também satisfizeram fartamente os estômagos ansiosos. Trouxeram mais vinho, aguardente e whisky das barricas da nau, beberam o resto da noite até caírem e cantaram satisfeitos abençoados por Frei Benevides, que, ao entardecer, voltou ao acampamento para confessar o comandante, aconselhá-lo, lembrar-lhe das promessas de ofertas em dinheiro à Ordem, da obediência ao Papa e à Virgem e para saber as novidades desse primeiro dia em terras desconhecidas.
Nos porões das naus, os escravos esquecidos ansiavam por água fresca e comida quente. Mas a noite chegou e apenas viram ao longe, pelas escotilhas, as fogueiras na praia e ouviram os cânticos ébrios dos marinheiros. O que sentiram foi o cheiro ténue, trazido pela brisa que soprou na direcção dos navios; o cheiro de carne suculenta assada nos espetos e o cheiro a álcool e pimenta, malagueta e rum, o que os fez adormecer e sonhar com um mundo diferente, mais justo, um mundo de um verdadeiro Deus, que talvez fosse melhor se de carne e osso se tratasse e se tivesse vida terrena, que andasse pelo mundo, entre fracos e miseráveis, não em espírito, ausente, e pudesse sentir como homem, na pele e no sangue, a dor profunda, lancinante, do punhal traiçoeiro por Ele cravado da escravidão.
De noite, na intimidade do quarto, ou na tenda de campanha, à luz tremeluzente de lamparinas, D. Rodrigo pensava no rumo que seguiam as naus à sua responsabilidade e chamava o seu oficial e adjunto de confiança, D. Mateus, da Real Escola do Mar de Córdova, para fazerem o balanço da aventura e traçaram novos planos para os dias que tinham pela frente. D. Rodrigo afastava da mesa os mapas, sextantes, quadrantes, bussolas, compassos, transferidores, lápis, aparos, tinteiros e cartas de navegação e ambos estudavam atentamente duas velhas cartas gordurosas e muito rabiscadas com hieróglifos chineses da dinastia Ming e do navegador e explorador Zheng He, que, dizia-se, em 1400 dera duas voltas ao mundo e deixara extenso material para consulta sobre luas e marés, constelações, nebulosas, lugares e portos de abrigo, enseadas, baías, arquipélagos, ilhas e presumíveis continentes; alguns relatos de mercadores e viajantes judeus, marroquinos, venezianos, genoveses, árabes e mongóis que percorreram a costa de África e traficaram escravos, ouro, prata, álcool e mercadorias, também eram passados em revista pelos dois oficiais.
(continua)


Uma História Comum (2)

(continuação)                                           



Uma Lição para o Futuro

O golpe violento da espada cortou-lhe a garganta, junto à cabeça. O corte foi tão profundo e forte, feito de frente, num movimento brusco de cima para baixo, na diagonal, que apenas ficou uma ligeira extensão de pele a segurar as duas partes do corpo. O soldado voltou a levantar a espada e empurrou-a no sentido horizontal para debaixo da cavidade torácica, a meio do abdómen, trespassando o coração e os pulmões do segundo homem que lhe quis fazer frente. A seu lado, outro companheiro disparava o fuzil e a pistola contra dois guerreiros que vinham de encontro a eles, ameaçando-os com as compridas lanças. Do outro lado do círculo outros marinheiros disparavam e brandiam as espadas e as adagas contra alguns indígenas, e limpavam o terreno para que D. Rodrigo se assenhorasse do lugar. Bastaram mais alguns tiros e algumas mortes de velhos e mulheres para que a pouca população do aldeamento se ajoelhasse e rogasse que os deixassem viver. As mulheres agarravam-se às pernas dos soldados e rogavam misericórdia, as crianças encolhiam-se paralisadas de medo. Então o corsário, de pé, calmo mas atento, com a camisa branca de punhos de renda apertada nos pulsos, descansando a pesada bota sobre as raízes de uma frondosa árvore, e rodando um anel com o sinete de oficial da Armada de Sua Majestade, ao lado de outro, no dedo médio, com o brasão papal, com um brilho divertido no olhar e as faces rubras de prazer sangrento, suspirou entre duas baforadas sôfregas de fumo acre do charuto colombiano e ordenou que acabassem com aquilo, pegassem fogo ao que sobrava, matando tudo o que vivesse. Apenas os animais de criação seriam poupados para o repasto do exército. Não houve prisioneiros. Os que se esconderam entre os arbustos foram perseguidos até que os soldados se certificaram que ninguém continuava vivo. A aldeia ardeu durante vários dias.

Francisco Munõz era um marinheiro que há muito acompanhava D. Rodrigo nas suas navegações pelo mundo. Percorreram milhares de milhas em busca da fortuna, procurando ouro, atacando e saqueando o espólio de navios piratas, árabes e muçulmanos, ou de quem andasse no mar em expedições de exploração científica, procurando novas rotas, portos e comércio com outros povos ou simplesmente traficando escravos. De navegadores ao serviço de Sua Majestade, facilmente se transformavam em corsários no alto mar, ou em força privada, em terra, protegendo algum castelo e os campos em volta e oferecendo os seus préstimos a fidalgos, à nobreza ou a algum cardeal poderoso, consoante aquele que melhor lhes pagasse. Foi este o motivo da sua estadia em Itália, no passado, comandando um pequeno exército de trinta homens, durante vários anos, protegendo um nobre cavaleiro, um duque de Génova, ao serviço de quem praticaram vários crimes, guerras privadas, emboscadas, assaltos e extorsões. Francisco Munõz era um sanguinário, assassino profissional e dizia que o seu maior sonho, era um dia possuir e embalsamar um crânio humano. Já tinha experimentado dedos e orelhas de homens que torturara e matara, mas o seu objetivo principal era obter um crânio e fazer dele um pequeno troféu que transportaria no cinto, ou num bornal, para que o temessem como um verdadeiro caçador de cabeças.

Quando o massacre da aldeia terminou, Munõz dirigiu-se ao corpo do homem a quem quase decepara a cabeça e cortou o bocado do tecido que ainda o ligava ao corpo. Tudo estava envolto em sangue, que vertia em borbotões formando uma poça extensa. Trazia um feixe de ervas nas mãos e embrulhou a cabeça nas plantas para estancar o sangue. Levou o objeto consigo, junto de outros pertences seus, dentro de um saco de estopa e fez toda a longa caminhada de regresso ao acampamento, feliz por finalmente possuir aquilo que tanto sonhava. Durante vários meses, elaborou várias técnicas, descolando a carne, raspando e secando o crânio, que transportava para onde quer que fosse, deixando um cheiro nauseabundo atrás de si. Todos lhe tinham um medo atroz, era um homem de estatura elevada, acima do normal. Munõz andava sempre com várias armas à cintura e a tiracolo:     duas  espingardas presas a duas correias de couro cruzadas nas costas, vários sacos de pólvora, chumbo e pederneira pendurados no peito e pendendo dos cinturões; duas pistolas à cintura, um punhal comprido e uma adaga árabe curva, em meia-lua, presa numa coxa e a outra na bota de cano alto, faziam dele uma figura terrivelmente assustadora. Por detrás de uma barba espessa, escondiam-se duas orelhas donde pendiam grossas argolas de ouro puro. Tinha o cabelo preso atrás num rabo-de-cavalo comprido e uma face quase negra, donde sobressaiam dois olhos chamejantes e uma boca quase sempre cerrada, que se transformava num esgar assassino.
Os corpos ficaram abandonados aos animais selvagens. Quem passasse por ali nos dias seguintes poderia ver pedaços de corpos e membros rasgados pelos lobos e pelas hienas. Os cães e os pássaros entretinham-se a puxar pelas pernas e pelos braços dos cadáveres. A povoação tornou-se pasto dos abutres. Um cheiro a putrefação sentia-se ao longe, a quilómetros  dali.                                                                                                                         
Os novos senhores da selva abandonaram o lugar. Lavaram-se numa corrente de água que passava perto. Tingiram o rio caudaloso, de sangue. Descansaram algumas horas e regressaram ao acampamento perto da praia. Segundo o comandante, num raio de centenas de quilómetros, em breve se saberia do sucedido e o medo reinaria sobre aquela terra. Só assim se abreviaria e evitariam mais mortes e futuros incómodos. Era boa, a pacificação, e estava concluída. Deus haveria de recompensar o sacrifício por eles feito de aniquilar estes seres, que, por percalço divino, viviam entre a bestialidade e o inferno.

Chegados ao acampamento, Frei Bartolomeu Bonifácio Benevides deu-lhes as boas vindas, aspergiu-os com água benta, e benzeu todo o grupo, ajoelhados. Nessa noite, a festa foi de grande intensidade. Beberam mais do que habitualmente. A música e os gritos, os urros e os choros ouviam-se nos porões das caravelas. Os instintos mais primitivos libertaram-se naquela noite. Transformados em bestas, em lobos esfaimados sedentos de sangue, buscavam novas vítimas. Houve quem quisesse ir ao navio matar mais alguns, mas esses estavam protegidos pelo comandante, pois renderiam uma valiosa fortuna. O sangue humano e o seu odor característico provocavam neles um efeito de psicose coletiva, contagiante, um êxtase catártico, que agora era difícil travar. Alguns marinheiros diziam que aquela carne não era humana, de nada valia, pois era demasiado macia e facilmente era penetrada pelas espadas e pelos facalhões. O cheiro a carne humana queimada pairava no ar, o próprio chão exalava um vapor tenebroso, colara-se nas roupas dos marinheiros, nos cobertores, misturava-se com os restos dos animais que mataram e esfolaram no regresso. Toda a enseada exalava um odor a suor, a sacrifício e a morte. O comandante Rodrigo embebedara-se e adormecera vestido dentro da sua tenda. O frade Bartolomeu Bonifácio Benevides voltara para a nau, instalara-se confortavelmente, bebera vinho de melhor qualidade e comera dois suculentos bifes de carne fresca de veado e ainda algumas costeletas dos porcos trazidos da aldeia. Deitara-se com as vestes da Ordem, mas antes fizera a oração e agradecera a Deus o privilégio de servir o Papa e acompanhar D. Rodrigo González Navarro na mais bela das expedições.

Durante muitas horas festejou-se a conquista destas novas terras a que chamaram de Terra do Futuro. Mais tarde Sua Santidade haveria de lhe atribuir um nome católico e Sua Majestade a Rainha María Stewart registá-la-ia como a nova possessão do  Reino.                                            

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A abordagem tinha sido devastadora. A estratégia surtiria os seus efeitos ao longo das próximas décadas. O medo instalara-se entre os nativos daquela região. Começaria também para eles a mais longa e dolorosa das humilhações. O Papa e as Ordens religiosas efetuariam um trabalho de mentalização sistemático e eficaz, em parceria com o poder militar e civil, amasiando-se com estes e usufruindo dessas vantagens. Construíram-se impérios e sistemas de governo, estradas, templos, pontes e caminhos-de-ferro, à base da mão-de-obra que estes homens ofereciam.
Passaram-se décadas até que um frade português, jesuíta, de nome António Vieira chamasse a atenção para as práticas desumanas contra os nativos. Só a partir daí se suavizaram os métodos e se tornou branda a catequização, a evangelização e o tratamento a eles reservado.

As Terras do Futuro demoram a justificar este nome. Nas praias e nos areais extensos surgem cadeias de hotéis, resorts, casinos e condomínios de luxo. Os escravos das galés são hoje cavalheiros, usam fatos da Bond Street e transferem milhões entre offshores das Cayman Islands , as Bermudas e o Luxemburgo.                                               

O tempo e as marés levaram consigo os nomes dos corsários e dos piratas sanguinários que usavam caveiras penduradas ao peito. As grandes caravelas jazem no fundo dos oceanos, carregadas de ouro vindas dos reinos de Malabar e do sultão de Samorim. A erosão e o vento afastaram a memória daqueles dias, transformoram tudo em cinzas e pó, mas rezam as lendas mais antigas, (e digo porque ouvi da boca das mulheres anciãs), que nas noites de pouca lua, quando a luz apenas se resume a uma débil chama prateada, acendem-se repentinos fogos, aqui e ali, e os espíritos dos dois nativos curiosos surgem do nada, vagueiam por aquelas areias, interrogando as conchinhas da praia e perguntando aos búzios porque terão morrido daquela forma. E há mesmo quem diga que os peixes vêm falar com eles à beira–mar.

Dezembro de 2011

José Luís Ferreira






quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Uma noite p´ra esquecer



Há muito que estava tudo muito bem combinado. Paulo e Cristina, Marta e Pedro. Sairiam de casa, lá por volta das dez, para não perderem um minuto, até calhava bem porque moravam perto uns dos outros, ali para os Olivais, numa urbanização bem bacana. Os pais eram gente boa, porreiros e até deram uma ajuda; eram ainda novos, na casa dos quarenta, lisboetas boa pinta. O pai da Marta usava brinquinho na orelha. A mãe da Cristina tinha dois "piercings" e era toda jeitosa. Conheciam-se todos e sabiam bem como era bom passar um fim de ano em grande. O pai do Pedro, um empresário designer enfiou-lhe uma nota de 50 euros, no bolso da calça, mesmo assim: vá lá pá, diverte-te e embute! A mãe da Cristina, organizadora de eventos, essa então foi bem mais generosa, andava a guardar umas notas para fazer uma surpresa à filha: - Vem cá, filha, guardei para ti. Foram logo cem euros duma assentada. O Becas, como era conhecido o pai do Paulo, era um empresário com vários negócios. Não tinha ramo fixo, mas estava sempre ativo e a fazer dinheiro em várias coisas ao mesmo tempo. Um vivaço à boa maneira. Só se queixava dos impostos. Isso é que era o grande mal deste país dizia ele. Mas cada vez engordava mais a sua conta bancária.

 Tudo corria pelo melhor. Bem vestidos, calças acabadinhas de estriar, gravatinhas à maneira, uma maravilha todos eles. Não chovia nem estava muito frio. Os rapazes banhados em Paco Rabane, elas molhadas em Tommy Hilfiger. Jantaram uns camarões e massas italianas, num pequeno restaurante novo, com luzes baixas, - uma intimidade que só visto, uma coisa mesmo especial! - que abrira a caminho da discoteca. Ali estiveram a aquecer. Beberam algumas cervejas, eles, só duas cada um. A Cristina foi para os martinis, foram logo três seguidos para aperitivo; depois foi o vinho branco colheita especial, para todos. Marta só entrou nas rodadas na hora do verdinho.

 Lá para a meia noite partiram para as Docas, no carrinho do Pedro, um Honda azul metalizado, todo bem quitadinho, a esgalhar. Entraram e começaram a abrir com "shots". Dançaram e a noite prometia. Passaram a meia-noite e foram abraços e beijos que nunca mais acabavam. Chamadas telefónicas nos wcs para os pais, sms para os amigos. Tudo na maior das curtições.

 Mas de repente há um tipo que se mete com a Marta e Pedro pergunta-lhe se tinha algum problema.
- Ó meu, estás cansado de estar bem? Diverte-te, pá! O outro, um tipo das Galinheiras, entroncado e bem musculado, não gostou do ar de menino bem do Pedro e pergunta-lhe se quer experimentar lá fora…Diz-lhe que a miúda devia era estar do lado dele. O Pedro não engoliu a afronta, porque também não era tanso, era menino, mas sabia bem o que era a vida.

 Saíram aos empurrões, já nada nem ninguém os segurou. O Pedro lançou-se ao tipo, atirou-lhe logo um direto aos queixos. Exacerbados pelo etílico, gritavam e rasgavam-se engalfinhados. O tipo das galinheiras, era mesmo do piorio, gangster, meteu a mão atrás das costas, sacou uma fusca e disparou sobre o Pedro. Apanhou-lhe em cheio no peito, fazendo saltar para fora da camisa uma roseta vermelha, de sangue quente que não mais parou de se espalhar. Tudo se transformou. Marta e Cristina desatam aos gritos, descontroladas, choram, o tipo foge para o carro e arranca a toda a velocidade. Chamam o 112, aparece a polícia e isola o local. Pedro está muito mal, sacode o corpo, agarrado ao peito. Os amigos acarinham-no, Paulo, agarra-se ao amigo. Os três estão em volta dele. Aparace o 112 e leva o Pedro que se apaga a meio do caminho. Quando chegam ao hospital fazem tudo para trazê-lo à vida mas já nada é possível.
Aos vinte e sete anos, uma bala desnecessária cruzou-se no caminho de Pedro.

 Pedro é agora apenas uma doce recordação para os amigos. Marta está solitária há três anos. Perdeu a vontade de tudo. Diz a todos que Pedro era único e nunca voltará a ter mais ninguém. Sofre do coração e já teve um princípio de enfarte. Consome-se em recordações. Teve um esgotamento cerebral e nunca mais pôs os pés numa discoteca.

 J.L.F.




domingo, 25 de dezembro de 2011

Diário de Bordo (1)




Querido Diário,

Parece-me que esta é uma boa altura para voltarmos a dialogar. Acho que vale a pena manter este desafio, pois é uma forma de tentar superar certas limitações, certos constrangimentos e nada há como passar para o papel alguns pensamentos, recorrentes, eu sei, mas que tenho absoluta necessidade de tratar. É uma espécie de ajuste de contas com a vida. Tudo coisas muito simples, cogitações, dúvidas, justificações e perplexidades. É um bom exercício, não há dúvidas. Tento conjugar a forma literária, o lado formal, com aquilo que tiver a coragem de expor. Vejo isto como uma experiência, uma pré-abordagem a qualquer coisa, que eu não sei bem o que será, gostaria que fosse um livro, se um dia tiver a sorte de o publicar mas é, à priori, um modo de saber até onde me disponho a ir. Enfrento a minha consciência, certo de que, como homem, andarei sempre à superfície, sem exacerbar, mas em pleno exercício democrático, livre, errando e corrigindo, mas errando sempre. Claro que não digo tudo, reservo um espaço largo para a minha vida íntima, pois este será um ato público; mas espero ter a coragem e a sabedoria para fazer alguma coisa que valha a pena. Veremos como me saio.
Chegamos ao Natal e dentro de dias viraremos mais um capítulo da vida, ou seja mais um ano. Não posso dizer que este que passou foi mau, pois viajei, fui até à Dinamarca – Copenhagen,  a minha família manteve-se unida, embora a minha filha e genro continuem longe. Não há tragédias, tudo segue o seu curso normal. Mas como cidadão português sinto-me bastante desiludido com a forma como os políticos conduziram este país. Como dizemos por cá, “não habia nexexidade”, um país tão bom para se viver…. Ao contrário de muita gente, não acho que Portugal seja pobre. O discurso habitual do coitadinho e pequenino, já não cola. Tenho para mim que Portugal é um país cheio de potencialidades; porque está geograficamente muito bem situado e é membro da Nato e da UE.  Devido à sua vocação navegadora e presença secular em África está apto a fazer as pontes entre a África negra, o Magreb Árabe, o Mediterrânio e a Europa e ainda está muito bem colocado para alcançar o continente americano, devido à ligação fraternal ao Brasil; e já agora, pela sua natureza ibérica também faz parte da comunidade dos países ibero-americanos. Portugal tem a configuração ideal do seu território. Uma parte banhada pelo mar e outra interior. Mas há quem faça dessa interioridade a desculpa para o atraso. Virgem mãe! A afabilidade genuína, a simplicidade, o fácil relacionamento, a sinceridade e o seu lado humorístico fazem do português um indivíduo único. Temos uma orla marítima atlântica e uma faixa costeira privilegiadas, um clima temperado, solos aráveis, vinhas e lagares. Nem preciso de consultar a Wikipédia para saber mais…. O que se passa então, porque se chegou a esta situação de corda ao pescoço? Claro que é uma crise sistémica, todos os países europeus se excederam nos défices, mas nós temos fragilidades demasiado gritantes. Poucas marcas de renome internacional, uma indústria quase inexistente, a agricultura desativada, os estaleiros desmembrados, etc, etc. Agora exige-se um esforço brutal e privações tremendas, uma incerteza para o futuro muito grande, cortes nos salários e todo um rol de medidas que nunca mais acabam. E a presença e o controlo de entidades estrangeiras sobre Portugal. Mas pronto, que sirva de lição para todos. Agora, acima de tudo, pede-se que haja uma mudança de mentalidade. Os portugueses terão que fazer um esforço e superar-se, aplicar os métodos dos países nórdicos, acho que é o que melhor se encaixava neste país e que melhor nos serve.


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Diário de Bordo (2)


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Não deverão estar permanentemente a gabar-se que temos isto e somos aquilo. Mais contenção, parcimónia e lembremo-nos que outros têm tanto como nós. Também têm uma cozinha farta, boas paisagens, tudo o que temos aqui, há por esse mundo fora… Hoje não há amigos e a China, a Índia e o Brasil, estão aí para competir - e em termos desiguais - com as economias mais desenvolvidas.

Quanto à Europa e aos problemas que agora se põem. A União Europeia que temos hoje, foi configurada pelo Tratado de Roma, com base nos problemas que se colocavam após o fim da segunda guerra mundial. Muito sucintamente, direi que esta união concedeu aos países que o assinaram, 60 anos de paz, prosperidade e bem-estar, como nunca antes a humanidade tinha experimentado. Sob o paradigma da cooperação e da regulação supranacional, os estados contribuíam para um fundo comum que por sua vez reverteria para beneficio e desenvolvimento dessas mesmas nações. O Estado Social previa o futuro garantido para milhões de cidadãos saídos dos escombros da guerra. Mas o mundo mudou e as economias emergentes (leia-se a China e a Índia), com a mão-de-obra barata, surgem para disputar o que ninguém esperaria. A queda do muro de Berlim, a abertura ao Leste e a assimilação desses países, numa Europa a vinte e sete impõe novos desafios e novos mercados em competição. Acresce a tudo isto, o mega poderio das instituições financeiras, principalmente nos EUA, as fraudes em cadeia, as bolhas imobiliárias, o 11 de Setembro, a desregulação e ausência de supervisão dos governos e dos organismos fiscalizadores e o colapso do sistema financeiro na América, tudo isso serve para alterar os dados do problema. A Europa necessita de uma nova UE com base num novo paradigma que ainda não foi inventado. Está para nascer, mas por enquanto está com as dores do parto. Quanto a Portugal, e a presumível saída da união monetária. Ninguém sabe, há analistas que dizem que isso será inevitável, outros afirmam o contrário. De qualquer forma, se isso acontecer será muito, muito mau. Mas não há nada insuperável e com certeza que os portugueses saberão desatar o nó do problema.
Portugal tem problemas específicos que deve ter em conta. Terá que olhar para outros países e, sem alterar a sua idiossincrasia deverá levar em consideração alguns aspetos. A Suécia por exemplo, é um país considerado rico, mas existe lá uma forma de estar sem espalhafato, é tudo bastante equilibrado, pareceu-me que as pessoas levaram um bom banho de bom senso, dá a sensação que todos os atos são muito bem pensados. Até o álcool foi em parte suprimido. Não se bebe com tanta facilidade como no resto do mundo. Se não lhes servia, souberam ter coragem de limitá-lo no dia-a-dia. A riqueza, entre os nórdicos, é muito melhor distribuída, mais equitativamente. Parece que o bem-estar atravessa toda a sociedade! Vemos um bom nível de vida generalizado. Não há tantos ricos, mas também não há tanta pobreza. A primeira vez que fui à Holanda, já há uns bons anos fiquei admirado com a maneira de vestir das pessoas, todas muito bonitas e com roupas caras. Em Portugal cada vez se anda com pior aspeto. Vamos para a periferia e assustamo-nos com o ambiente nas paragens dos autocarros. Não se trata só de imigrantes, gente de fora. Portugal exagerou na ânsia de mostrar ao mundo que somos grandes e podemos ombrear com os maiores. Não era preciso. Quando temos a certeza do que somos não precisamos de alardear e fazer foguetórios, ambiente de feira. E os nossos políticos às tantas transformaram o país numa feira. É esta a mentalidade que tem de ser mudada. O português passa facilmente do oito

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Diário de Bordo (3)


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para o oitenta. De uma atitude elevada, de repente desata a dizer mal de si próprio, com uma descrença que me põe constrangido. Não basta estar sempre a evocar uma história de novecentos anos se isso não contribuir para o bem-estar dos cidadãos.

Existe entre nós alguma ignorância quanto à liberdade de movimentos e cidadania do indivíduo a nível global, mundial. Ainda se olha de viés aquele que se tenta instalar num país diferente. É sempre olhado com desconfiança. Não é o meu caso. Portugal tem há décadas acordos especiais, de naturalidade e cidadania, com Angola. Não é de hoje. Mas ainda há gente que finge não saber. É preciso que compreendam que é um direito fundamental do homem poder escolher onde quer viver. Estamos em países livres onde a liberdade de expressão é um dado fundamental e um cimento que devemos saber preservar, com todas as suas vantagens mas também obrigações. Temos que saber conviver com a crítica por mais forte e contundente que ela seja. É preciso saber explorar este poder até ao seu âmago. Constato por vezes, que há sempre uma tendência, em Portugal, para não se respeitar os direitos de cada um e tentar ultrapassar, por via de expedientes mais ou menos canhestros, o nosso concidadão, invadindo o seu território e julgando-nos no direito de impor uma supremacia, vinda nunca se sabe de onde, outorgada nunca se sabe por quem. Problemas da falta de uma verdadeira tradição democrática. Falo de Portugal, mas imagino como será em Angola neste aspeto. Assim, nada me roubará o direito de me exprimir. De momento é aqui onde quero estar.

 Mudemos de assunto, então como vai a minha relação com Angola? Às vezes há gente que me acusa de desprezar a minha terra, patati, patata, blá, blá, blá. Ao contrário de outros, nunca usufruí de benesses pagas pelo estado angolano. Para mim, terra, é onde me sinto bem. O conceito de Pátria é muito lato. Podemos passar sem ela. Não sou de criar raízes. Como alguém disse, raízes têm as batatas. A necessidade cria fórmulas de sobrevivência, que só aqueles que vivem esses momentos o conseguem perceber. Eu sou um cidadão do mundo! Mantenho uma boa relação com Angola, estou com Angola como estou com Deus; estamos bem, admiramo-nos mas não falamos. De qualquer forma é uma ligação que poderemos sempre reatar e incrementar. Tudo depende da ocasião. Para onde for levo Angola comigo. Assim como levo Portugal no coração. Como a canção do Marco Paulo: “Eu tenho dois amores….” Torna-se muito difícil para mim manter um pé cá e outro lá. Tenho dupla nacionalidade. Mas acompanho com interesse a situação política em Angola, acho que os políticos angolanos têm feito um esforço para melhorar. Quanto ao Presidente José Eduardo dos Santos, pessoa que eu admiro e prezo, considero-o o legítimo presidente de Angola e para mim, é um homem que dedicou toda a sua vida a esta causa, a causa de Angola e da sua formação como nação. Mas chegou o tempo de mudar. Não queira, sr. Presidente, eternizar-se no poder. Faça-se substituir, de modo discreto, mas efetive essa mudança. Hoje, essa é uma atitude obsoleta para um país que se quer moderno, e incompreensível para os outros estados e nações. Os angolanos ultrapassaram tempos muito difíceis, provações terríveis, mas o pior já passou. Angola tem mostrado bons índices de desenvolvimento. Existem muitos problemas, como o da inflação, a moeda angolana de nada vale, a corrupção e o compadrio devem florescer entre a sociedade angolana, há demasiados ricos no país, mas não se pode
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Diário de Bordo (4)


(continuação)

exigir tudo de uma vez. Roma e Pavia não se fizeram num dia. Quanto à filha do Presidente, a Sra. D. Isabel dos Santos, a mega empresária de que todos falam. Ser rico não pode ser considerado um anátema, se ela é uma grande investidora, se é dinâmica e tem ideias para melhorar o seu país e dar emprego a milhares de cidadãos angolanos, então porque a criticam? Porque é que em Portugal pode haver um Belmiro de Azevedo e um Américo Amorim e em Angola não pode? Isso é que eu acho estranho. Pela sua ligação ao pai? Claro que não quero mostrar ingenuidade, mas se esta for a única via para que o empresariado angolano apareça, floresça e se desenvolva, pois então que o seja. Porque é que ela investe tanto em Portugal? Ora bem, isto é bom para ambas as partes. Então Portugal pode investir com toda a força em Angola e Angola não pode investir cá? Tudo preconceitos  antigos…                                                                                                           
Gosto de ver a diplomacia portuguesa e o Min. Negócios. Estrangeiros dr. Paulo Portas correr para os braços do Presidente José E. dos Santos, este mesmo P.P. que no passado chamava aos políticos de Angola todos os nomes e mais alguns, desde fascistas a corruptos. Passando por “apparatchiks”, “nomenklatura” e afins. Mas, tudo bem, considero que Portugal deve explorar até ao limite a sua boa relação com Angola e Angola deve também eleger Portugal como seu parceiro privilegiado. Mas infelizmente existem ainda muitos mal entendidos, de ambas as partes, que só o tempo poderá dissipar.
 Bom e então sobre os meus textos? De momento estou neste impasse, vai que não vai, como dizem os brasileiros. As noites de trabalho dão cabo do pouco discernimento que tenho. Os momentos de boa lucidez não são assim tantos. Numa tarefa como a escrita que requer concentração e uso integral das faculdades cerebrais, fico de braços caídos quando depois de uma, duas , três noites de trabalho, preciso absolutamente de dormir e recuperar as substancias que perdi, a nível do cérebro. Depois tenho que agarrar o fio condutor, voltar ao normal, e é tudo muito difícil. Mas não faço disto o meu trabalho, apenas me divirto a criar personagens e ambientes. Devia consultar um especialista para rever estas coisas e dar uma opinião técnica, abalizada. Tenho um texto sobre violência que dentro de dias vou publicar no meu Blog, uma história do tempo dos navegadores, que é uma visão, sei que demasiado radical e parcial, da colonização. Tenho que exorcisar estes pensamentos, fazer saltar tudo cá para fora, são idéias recorrentes mas que estão a entupir-me a cabeça.                                                                                                         
À espera de ser refeito continua o meu projeto da novela. Isto é que é mais complicado. Sei que tenho por lá ideias engraçadas, que poderiam ser desenvolvidas, mas coloquei a história num mundo que eu não conheço. É a história de um grupo de pessoas que andam pela Europa a fugir. Tenho à volta de dez personagens construídas, com datas e factos, mas não quero falar muito disto. Esperemos por dias melhores, ou por milagres.
Quanto à minha vida sentimental. Não seria eu se não falasse disto. Aqui entramos no domínio do difícil, em território minado, he he he! O amor é uma caixinha de surpresas, uma bomba com deflagrador ao retardador. Claro que paixões e paixonetas nunca faltam, mas nada de concreto e definido. Com a minha experiência de vida, tornei-me cauteloso, mas como sou por natureza um romântico incorrigível e à moda antiga, daí o esperar sempre mais do que a vida me pode dar; Sou do lado da noite e a penumbra faz de mim um ser estranho. Mas tudo isto são aspetos triviais, divagações de alguém que pretende fazer uma catarse, coisas banais comuns a qualquer velho pinga-amor, como eu. E por aqui me fico,

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Diário de Bordo (5)


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não tenho coragem para dar mais dados da minha vida intima. Vamos puxando o novelo, para ver se sai mais qualquer coisa. Também não quero parecer o idiota que se põe a desfiar toda a sua vida, em público, nem como a menina que escreve o seu diário cor-de-rosa e inunda-o com corações, com amores para aqui e amores para acolá!. Mas como terapia, acho um bom exercício.

Falemos de livros, essa minha outra grande paixão. O verdadeiro fio condutor, a mola impulsionadora que me leva a escrever estas linhas. Tenho lido algumas coisas boas. Gosto de ficção, de transposições e relatos de factos e acontecimentos do dia-a-dia numa linguagem literária, floreada. Se um escritor consegue montar uma história a partir de gente vulgar e assim transformá-los em frescos de uma época ou de uma sociedade, a mim fascina-me. O livro é o pai e a mãe de tudo. É a base da cultura. Tudo gira à volta do livro. Raul Solnado dizia que quem frequenta o teatro se torna diferente, mais educado, aprende a estar e a colocar a voz, transforma-se como do dia para a noite. Eu corroboro essa ideia e acrescento o livro. É o outro grande pólo do conhecimento. Neste momento ainda estou com o John Irving, quase a chegar ao fim, apetece-me a seguir ler Julian Barnes (Man Booker Prize 2011), ou Christopher Hitchens, o anti- Cristo, o pensador e filósofo inglês que morreu há poucos dias. Este autor é fundamental para aqueles como eu, céticos em relação a Deus. Aliás gostava de puder explicar um pouco a minha postura em relação a Deus e às religiões.

Sou dos que não passam o dia a interrogar-se sobre Deus. Tenho um caminho e é esse que sigo. Não acho que estar permanentemente a balbuciar o seu nome nos vá levar a lado algum. Não é por seguir afincadamente a palavra de Deus que me tornarei um individuo melhor. Se Deus existe, e estou em crer que sim, mas nada mo garante, não precisa de mim para louvá-lo permanentemente. Para isso tem os padres e toda a hierarquia da Igreja e das religiões. Mas porquê? Porque teremos que estar sempre de joelhos, de mãos postas a rezar; porque será que orar tem que ter mais espaço nas nossas vidas do que outro aspeto qualquer? Porque tenho que estar sempre em contato com Ele e a glorificá-lo? Cheira-me a uma boa dose de exagero. Acreditar em Deus é uma coisa, ter uma religião é aceitável, muitas vezes aconselhável até, para gente insegura e que precise de uma muleta, mas acho que há muito excesso nisso tudo. Queremos ser mais papistas do que o Papa. Nem eles, os dignatários da Igreja estão sempre a badalar conceitos e a dissertar sobre Deus. Na ansia de querermos parecer virtuosos excedemo-nos em fraseados inúteis e sem sentido. Tenho dúvidas se é isto realmente o que Deus quer. Em certos países levam isto ao extremo. Pronto, não quero adiantar mais. Chega de falar de Deus. Estamos bem, respeitamo-nos, ele não tem razão de queixa de mim e eu estou descansado em relação a isso. Só que olhando para o mundo, verifico que ele tem andado ausente, mormente nos sítios onde grassa a fome, onde crianças morrem aos milhares. Os crentes apresentam sempre uma desculpa, ora é porque é gente que não acreditou nele, ou porque a reincarnação ainda não atingiu a perfeição, et., etc. Por mim fico-me com a teoria de que nada está demonstrado, tando pode existir como não. Vou ler Cristopher Hitchins e vou ficar mais elucidado.

 Bom, querido diário, hoje excedi-me nas minhas considerações. Mas são assuntos que tenho pendentas e não há nada como ter a escrita em dia.

 Votos de um Feliz Natal para todos
Deste que se assina

Queluz, 25 de Dez 2011

José Luis Ferreira








sábado, 24 de dezembro de 2011

A Barcaça do Tempo


As motos do princípio do século e as montanhas frias da cordilheira dos Himalaias, dos Andes, ou dos Pirinéus. A barcaça com rombos no casco e os capacetes fora de uso; as malas largadas à pressa. O tempo, a ferrugem e o caruncho tomaram conta de tudo e vão destruindo o belo cenário no nevoeiro, da barcaça sem rumo. Já não se vê nenhum rosto humano. Implacável, o sentido da inutilidade das coisas sentenciou-a ao abandono. Agora, perdida no tempo, vagueia ao sabor das ondas e das correntes e o seu destino ficará traçado ao chocar contra os rochedos ou engolida pelas vagas e pelas marés.

Nas grandes perseguições, em quarenta e cinco, os resistentes escondiam-se dos exércitos fascistas e organizavam fugas para as florestas, montes e vales. Agradeciam a sua ajuda e depositavam nela a máxima confiança.

No seu bojo viveram-se histórias e dramas de outras épocas. Gente das montanhas, bucaneiros, andarilhos dos caminhos e dos trilhos esquecidos, proscritos, assaltantes de carroças carregadas de haveres, gente sem lei, desciam e usavam-na no seu quotidiano de pobreza, no comércio e no contrabando de tabaco, rum e aguardente. Novelos de corda, arame, anzóis, artefactos de pesca, peles de castores, casacos de raposa, dentes de ursos para o mau-olhado, carne seca de javali, salmão fumado dos rios e animais de criação, porcos e galináceos amarrados ao colo de gordas mulheres, com a pele escura das mexicanas.

Um dia, numa rixa por dívidas de jogo, dois filibusteiros trocaram insultos e socos, e alguém disparou um fuzil de pederneira, enquanto a pequena embarcação se inclinava perigosamente e ameaçava ir ao fundo. Ficou o morto, encharcado num tapete rubro de sangue, no convés, que o assassino se encarregou de atirá-lo ao mar. Abandonada e amaldiçoada, diziam que carregava maus presságios. Vagueia agora sozinha, qual jangada de pedra à espera da sentença final. Entre fantasmas do passado, entre restos e dejectos, debaixo de chuvas torrenciais e do frio gelado, enfrenta o seu destino solitário, no meio da bruma, e dos pássaros que soltam gargalhadas pueris, lhe grasnam nos ouvidos e poisam as unhas sobre o seu desengonçado esqueleto.

Já não se vê nenhum rosto humano. Nos dias de sol e intensa luz tropical ganha novo alento, renasce por breves instantes, mas sabe que será fugaz a sua alegria. O rombo no casco é cada vez maior. A madeira descola-se e desfaz-se, e o alcatrão já não sustém a força da água.

Perdeu-se na memória dos vivos. Ninguém lhe fará história. Já não há contadores e as lendas tinham a sua linguagem própria. Hoje, o seu passado heróico já nada diz.

Agora, resto apenas eu, que naveguei com ela por esses mundos distantes, do Báltico à Patagónia e lhe conheci as lendas, sentei-me e ouvi as velhas e tristes canções dos companheiros foragidos, de tristes destinos, e as suas vidas passadas, mas também eu já me vergo ao peso dos meus espectros.

J.L.F.

A Barcaça do Tempo


Cesária Évora (1941-2011)



Afinal Cesária Évora não morreu. Estamos tão fortemente ligados a ela, que a Cesária Évora vai estar para sempre por aqui a encantar-nos com as suas mornas. É apenas um até já e um beijo para ela.

Agostinho Neto dizia que devemos "chorar com os olhos secos". Sei que ela gostava dele. Para Cesária Évora dedico-lhe sse poema de Angola: "Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias / e o amor / e os olhos secos" (A. Neto, 1961)

Tudo nela era tão bom, tão doce, tão nostálgico... harmonia é tão grande, é tudo tão instintivo, há tanta dose de sentimento nela, que tudo é excelente. Um até breve para ela.

Aqui é a musica daquelas ilhas um bocado esquecidas no meio do Atlãntico, um povo com poucos recursos, que tem que emigrar muito, e filtra no seu coração aquela musica fantástica, cheia de melancolia, mas também ritmo, alegria e espontaneidade mas eles estão sempre alegres, nunca angustiados, vivem o dia a dia com uma capacidade de sofrimento muito grande e postura muito digna. Uma vez um labrego qualquer, num autocarro deu uma bofetada a um senhor caboverdeano, que eu não digo o nome. O Dr. Mário Soares, na altura Pres. da República veio publicamente pedir desculpas.

A rainha dos pés descalços, tinha o dom de através das suas musicas nos fazer sentir e cheirar África, com o que de bom e mau que África tem. Nós costumavamos dizer que suas musicas eram as musicas dos `cotas´.. mas tenho a dizer que, suas músicas nao são somente musica dos cotas, é a marca de uma geracão, bem como a inspiracão e companhia para tantos outros cantores e anónimos que se fizeram acompanhar e ouvir através de sua voz, e personalidade, e acima de tudo simplicidade, inundando os coracões de seus ouvintes, com uma profunda melancolia e tristesa, fazendo-nos repensar nos momentos trágicos que por vezes assolaram os povos de África.

Sofia Fereira

sábado, 17 de dezembro de 2011

"Lonnie´s Lament" de J. Coltrane por Chico Freeman


Ainda o caso Rui Pedro


A actuação da Policia Judiciária, há cerca de catorze anos, na investigação ao desaparecimento de Rui Pedro é difícil de comparar com alguma coisa. É um caso típico do nacional saloismo português. Dificilmente se pode dar provas de tanta incompetência, desleixo e laxismo. É gente que se acoberta por detrás de uma instituição com méritos reconhecidos, se protege e aconchega num pseudo-patriotismo boçal.

Ontem, o telejornal mostrava e tentava entrevistar os agentes que intervieram no caso, à saída do tribunal onde foram narrar aquilo que (nada) fizeram. Um deles fugia, escondido pelas abas do guarda-chuva, envergonhado, um outro dava o dito por não dito, também tapando o rosto com o chapéu verde de bombazina; bastou-me olhar trinta segundos para as imagens para que eu próprio me sentisse constrangido com tanta falta de vergonha.

Partindo das chefias que nada pediam à equipa no terreno, aos inspectores, que hoje se escusam com a clássica desculpa da falta de meios, todos contribuíram para que agora, seja praticamente impossível saber-se o que realmente aconteceu. Provas ocultadas pelos investigadores, pistas que não foram seguidas, testemunhas excluídas e que não foram ouvidas por pura preguiça e incúria, este é o mais acabado exemplo de um processo onde toda a merda se acotovelou para melhor repousar à sombra da bananeira.

Mas uma coisa me emociona quando vejo a família do Rui Pedro: os olhos. Os olhos da mãe que há catorze anos procura incessantemente o seu filho, os olhos e a cara magoada e desiludida do pai, com os seus compatriotas, que lhe mentiam, sonegavam perícias e diligências, quando garantiam tudo estar a fazer. E o amor indefectível do avô, que desembolsava milhares e milhares de euros em investigações paralelas, tentando saber o que aconteceu ao seu querido neto e é enganado por um presidiário e por toda a gama de oportunistas que lhe garantiam saber do paradeiro da criança, e com ele toda a polícia judiciária, tudo aqui é mau demais e retrata o ambiente em Portugal na década anterior .

Tudo isto esteve ao nível das polícias ineficazes e inoperantes nas ditaduras do Magreb árabe. Se transpusessem esta história para o ambiente dos últimos anos no Egipto de Mubarak, não notava diferença nenhuma. Tudo é uma questão de mentalidade. Ainda há um longo caminho a percorrer.

J.L.F.