Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma Visita Inesperada



O Sr. Ricardo era um sem-abrigo que há muitos anos vagueava pelas ruas de Lisboa, pedindo esmola nas estações do metro, do comboio, em praças ou jardins e junto aos centros comercias de maior movimento. Aqueles que o conheceram noutros tempos, contam a sua história, a história de uma vida feliz, de trabalho, porém interrompida por uma trágica sucessão de acontecimentos que o arrastaram para a rua, perdendo a família, o emprego e transformando-o num andrajoso, num maltrapilho. Dormia em vãos de escadas, em prédios abandonados, ou junto do calor das montras das lojas, aquecendo-se do frio, ou abrigando-se da chuva. Os seus pertences resumiam-se a um velho colchão de espuma, que ele enrolava a uma trouxa que trazia às costas, e a uma pequena mochila onde guardava os restos de comida que ia surripiando nas traseiras dos restaurantes, ou que os conhecidos lhe iam oferecendo para matar a fome e enganar o seu triste e bizarro destino.

 Os moradores de Queluz, onde o sr. Ricardo morara, contam que uma armadilha bem montada pelos chefes do banco onde trabalhava, passou para ele a responsabilidade do desvio de milhares de euros da tesouraria, culpando-o da falsificação das folhas e documentos da contabilidade. Esteve preso três anos e quando voltou, as finanças tinham-lhe penhorado a casa e feito o arresto dos bens. A mulher vendera o carro para pagar dívidas do jogo em que o sr. Ricardo era frequentador assíduo e pedira o divórcio, tornando tudo isto um peso demasiado grande para a sua frágil saúde. Meio transtornado pela longa estadia na prisão, desaparecera durante muito tempo, mas de um dia para o outro voltara, agora para as ruas, com os pensamentos distorcidos, numa amálgama densa e impenetrável, e fechara-se num mutismo desesperante, ruminando palavras ininteligíveis e desconexas. Vagueava trôpego e cambaleante, ostentando uma barba de várias semanas, perdido em fragmentos de memórias e sonhos de vingança contra quem o empurrara para o abismo.

 Dias e noites a fio, sozinho e esfomeado, levaram-no ao desespero, a um beco sem saída. Numa noite de fim de ano, sentiu que chegara ao limite. Ia terminar com aquilo, tinha que pôr termo a tanto sofrimento. Levantou-se de entre os trapos e cartões e olhou mais uma vez para os que se preparavam para comemorar, para as luzes cintilantes nos interiores das casas, ouviu o tilintar dos copos de champagne. Ouviu gritos e sorrisos abertos de casais felizes. Pensou como seria bom ter o calor dos amigos.Tremendo de frio, dirigiu-se para a linha do comboio e sentou-se junto aos rails. Ouviu o barulho das carruagens ao longe e deitou-se por cima das longas barras de ferro. Estavam frias também. Naquela noite tudo era gelo e frio. Esperou. Vinte, dez segundos, agora só faltavam cinco para que fosse esmagado, trucidado. Chegara ao fim. Mas há uma mão amiga que no último segundo o puxa para trás e o comboio passa a centímetros do sr. Ricardo. Sente um aperto no coração, uma dor aguda no miocárdio e cai para o lado, inanimado, agarrado ao peito. O funcionário que andava ali a fiscalizar as cantoneiras, e que o salvou, repara que o pedinte está a passar mal, que se contorce de dores agarrado ao peito. Chama ambulância que chega num breve espaço de tempo. O sr. Ricardo é ligado ao oxigénio e levado para o hospital.

 Está em paragem cardíaca, tem um enfarte e continua ligado ao oxigénio. Pressente a morte. Está do outro lado, ultrapassou os domínios do mundo credível; entra num turbilhão de impulsos negativos, escuta sons abafados - patas peludas de tarântulas que lhe batem à porta, num vórtice de picadas agudas e abraços como tenazes que o arrastam para baixo, para as profundezas dos abismos. Começa a dançar a valsa lenta da morte…

 Mas algo acontece numa fração de segundos. Abre os olhos e começa a sentir uma réstia de esperança, aos poucos as dores vão se dissipando e experimenta uma nova consciência. Há focos de luzes intensas à sua volta e tudo é muito confuso. De um ponto longínquo, de uma fonte poderosa emana um jorro de luz muito brilhante, de um azul transparente, quase celeste e saltam miríades de cristais que envolvem todo o corpo e o cobrem de calor; de repente não sente mais frio nem dores no peito. É levado por braços longos e macios que o colocam sobre uma rocha suave como uma almofada, leve e aconchegante como lençóis de gaze limpa e reconfortante. Uma sensação de prazer, de bem-estar incrível percorre-lhe o corpo. Percebe que entrou através de um portal cósmico, para uma quinta dimensão. À sua volta, acariciando--o e tocando-lhe o corpo com dedos finos e muito, muito compridos estão criaturas alienígenas, vindas de camaras tridimensionais, como hologramas que se reproduzem milhares de vezes, replicam infinitamente a sua própria imagem. Os seus olhos são ternos e a suas vozes fraternas. Falam-lhe aos ouvidos, dizem-lhe coisas que ele a principio não entende, mas aos poucos compreende que lhe estão a reprogramar o chip do córtex, a unir-lhe os fragmentos de memória e a dar uma nova consistência ao seu ego, a torná-lo novamente um homem capaz. Sente-se bem do coração, como uma criança forte e divertida. Está de bom humor, satisfeito como há muitos e muitos anos não estava. Tem a doce sensação de que o mundo é um lugar ótimo para se viver, já não pensa em vinganças e então retira os tubos que lhe entram pelas narinas e pela boca, os elétrodos que lhe monitorizam o coração. Levanta-se da marquesa e mais ninguém o consegue segurar. O sr. Ricardo pede uma casa de banho, diz que quer tomar um duche. Lá encontra uma enfermeira que vendo a sua simpatia e afabilidade acha muito estranho aquilo tudo, mas pressente que está em presença de algo insólito e bizarro. Olha para o sr. Ricardo e nota nele uma vontade tão grande e uma força tão poderosa que o impele para a vida, que o ajuda e o conduz para as arrecadações nas caves, onde descobre umas roupas antigas, mas esterilizadas e lhe oferece para se vestir.

 Há dias passei por um centro comercial e olhei para o interior de um pequeno café. O sr. Ricardo estava sentado á mesa, como um cidadão normal; bebia café e comia um croissant. Já não tinha barba e os cabelos estavam limpos e aparados, modestamente vestido, mas asseado. Lia o caderno de anúncios de emprego de um jornal da cidade. Via-se que um novo espírito percorria o corpo e a mente do Sr. Ricardo. Os seus olhos azuis estavam brilhantes e já não se apagavam olhando permanentemente para o vazio. Agora, quando olhava para o infinito distante sorria e sentia novamente aquelas mãos macias e fraternas que um dia o levaram para uma quinta dimensão e o trouxeram de novo à Terra, feito um novo homem com uma nova vontade de viver.


José Luis Ferreira
Dezembro de 2011

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