Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012




“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça por toda parte”
 
Martin Luther King Jr.
 
 

Justiça e Direitos


"... a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo..."

José Saramago


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Martin Scorsese, o grande derrotado



Martin Scorsese é um dos maiores cineastas do nosso tempo.  Dotado de rara mestria como realizador, é um cinéfilo apaixonado, que conhece a história do cinema como poucos e dirige ainda uma institução que tem como tarefa crucial preservar filmes.

Alternando ficção e documentário, realizou filmes excecionais em quase 50 anos de carreira, já tendo alguns projetos anunciados, como diretor e produtor executivo, para depois de "A invenção de Hugo Cabret," (de orçamento acima de 150 milhões de dólares, e com o resultado comercial fica aquém do esperado).

Ontem à noite, na cerimônia de entrega dos Oscares, das 11 nomeações, Hugo ganhou 5, o que não é nada mau, mas fica-nos a impressão de que Scorsese não é talhado para os Óscares. Nos momentos em que foram anunciados o melhor diretor e o melhor filme, Scorsese era o rosto da desilusão. O veterano cineasta manteve a compostura, mas ser preterido por Michel Hazanavicius e "O Artista", não pode deixar de ter magoado.

J.L.F.

Ernest Hemingway


Faz hoje 75 anos que Ernest Hemingway partiu de Nova York para escrever, como correspondente de guerra em Madrid, sobre a Guerra Civil de Espanha. A experiência inspirou uma de suas maiores obras, "Por Quem os Sinos Dobram". Hemingway fazia parte da comunidade de escritores expatriados em Paris, conhecida como "geração perdida", nome inventado e popularizado por Gertrude Stein. Levando uma vida turbulenta, Hemingway casou-se quatro vezes, além de vários relacionamentos românticos. Em 1952 publica "O Velho e o Mar", com o qual ganhou o prêmio Pulitzer (1953), considerada a sua obra-prima. Foi laureado com o Nobel da Literatura de 1954.
 
 
Guerra Civil de Espanha
 

Óscares: o triunfo de "O Artista"



                                         

A película de Michel Azanavicius consagrou-se a grande vencedora da noite dos Óscares, com cinco estatuetas incluindo Melhor Filme, Diretor e Ator. "A Invenção de Hugo", de Martin Scorsese, recebeu os prémios técnicos. Meryl Streep, ganhou o seu terceiro óscar com "A Dama de Ferro"        

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Berlin Festival 2012: "RAFA" JOÃO SALAVIZA WINS GOLDEN BEAR (João Salavi...



A curta-metragem «Rafa», de João Salaviza, venceu o Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim.

«Rafa» conta a história de um rapaz de 13 anos que vive na Margem Sul e vai para Lisboa à procura da mãe, detida numa esquadra da polícia.

Em 2009, o realizador venceu a Palma de Ouro em Cannes, também com uma uma curta-metragem ("Arena").

O júri formado, pela actriz palestiniana Emily Jacir, pelo cineasta irlandês David Oreilly e pela actriz alemã Sandra Hueller, destacou a «impressionante representação» de Rodrigo Perdigão, «no papel de um jovem a caminho de se tornar adulto».


Arena (2009) - João Salaviza



Arena
Curta-metragem portuguesa escrita, realizada e editada por João Salaviza, Palma de Ouro (para curtas) em Cannes 2009.
Ficha IMDB.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Diário de Bordo

                                                                                 
                                                                                                                                             
Querido Diário:                                                                                              
                                                                                                                            
No princípio era o verbo e do verbo se fez expressão


Hoje é um dia diferente, o 1º dia das nossas vidas. Gosto deste dia. O dia em que nascemos e em que de cada vez que acontece, renascem as esperanças de que tudo se transformará com o alvorecer de uma nova manhã: “a new beginning”. Aos cinquenta e sete anos ainda não fazemos balanços nem inventários, queremos só que o tempo decorra lentamente, “in slow motion”. A memória nem sempre é seletiva, é como uma enxurrada, uma avalanche, trás consigo o bom e o mau, não escolhe os dias felizes e inesquecíveis, nem deixa pra trás os momentos mais amargos e que queremos esquecer a todo o custo.

 A criança que eu era ontem, é justamente a que sou hoje. Atrás de um sonho, olhando para a noite cintilante, para Cassiopéia, Orion ou para a Via Láctea. Para lá das montanhas, não à procura de milagres nem de profecias, mas sim de Justiça, Paz e Harmonia. A mais forte impressão que tenho de um aniversário, sucede aos dez anos, quando pedia à minha mãe uma calça de linho azul, com dois bolsos assim e assado e uma camisa de pregas, de manga comprida e o meu júbilo, quando os meus pais me conseguiam satisfazer os desejos.

 Pergunto-me hoje o que é um amigo, quanto valem aqueles ou aquelas que nos acompanham ao longo da vida, que estão ao nosso lado para o bem e para o mal. Pela sua raridade têm um valor incomensurável, não têm preço.  

 Amigo não é a mera casualidade de um cumprimento, de um bom dia, nem a banalidade de um encontro, ou a circunstância de um “parabéns”, mais ou menos afetuoso, no dia do teu aniversário.

Amigo é aquele que partilha e que arrisca, que nos impressiona pela sua constância, mesmo quando as vozes teimam em nos excluir. Eles, esses amigos, são raros, são como pedras preciosas e surgem donde menos esperamos. Trazem consigo gestos bondosos, que nos tocam profundamente. Rendemo-nos a eles e a partir daí sabemos que ali está um amigo verdadeiro.

 Dos outros, daqueles que esperamos alguma coisa, verificamos que se escondem no anonimato e se esquecem, ansiosos por passarem despercebidos, dando o mínimo esfarrapado e trocando a ordem das coisas e dos valores. Na ansia de querer parecer o que não são, são aquilo que não parecem e parecem aquilo que não querem parecer que são.

Amigo é a proteção constante, o escudo necessário, de que precisamos quando soam as trombetas da guerra.

Amigo sacrifica o seu sono, para velar o teu descanso, é a mão que cuida de te ajeitar o caminho para a glória do êxito.

Amigo é aquele que se apaga para que só o teu brilho ofusque a cidade.

Amigo escreve no cantinho da agenda e conta os dias e as horas que faltam para te encher a alma de calor, te enrubescer de felicidade e te rasgar a boca com sorrisos de gratidão. É o prazer puro e simples de dar, de se rever na tua alegria, é o ato fraterno e carinhoso de um beijo ou de um abraço caloroso nesse dia, e nunca a obrigação burocrática de um dever oficioso. Entre amigos não há orgulho, nem superioridade, não há plano inferior nem superior, porque o verdadeiro amor é isento, é o elo da cadeia que os liga inexoravelmente. O amor real, de que o Homem precisa, não está atrás de uma sacristia, nem nos alfarrábios eloquentes de metafísicas obscuras. Não basta apregoar o amor, a seguir deixarmo-nos dominar pela presunção e vivermos de mãos cerradas.

 Amigo não espera o dia para te ferir, mas antes se declara antecipadamente que está pronto para te acompanhar no jogo da vida. Do amigo esperas bastante, nunca menos, e essa expetativa é legítima porque é proporcional áquilo que és capaz e que tens para dar. Só assim os amigos se complementam e se completam, fechando o círculo do sagrado e encerrando o cofre dos tesouros incalculáveis.

Amigo não tem intermitências, é o pronto-socorro com sirene ligada.

Amigo é a urgência do ontem, a inevitabilidade do agora.

Amigo é a sede da água e a fome do pão.


Se encontrei a felicidade? Estou prestes a chegar ao lugar da pedra filosofal, da verdadeira alquimia. Aprendo todos os dias um pouco mais. Chegará o momento em que dominarei a arte de saber viver com o que a vida me põe á frente; caminhar por este mundo de sombras e luzes, sem sonhos de grandeza, nem atrás do supérfluo e do efémero. O meu “Santo Graal”, o cálice sagrado, contém uma biblioteca imaginária, uma arca cheia de livros e conhecimentos, onde cabes tu e todos aqueles que ao longo dos tempos vêm partilhando comigo alegrias e tristezas e que nunca abandonaram essa demanda a meio da jornada.


Para mim, será essa a suprema sabedoria e a felicidade total.

 21Fev2012

J.L.F.

domingo, 19 de fevereiro de 2012



"Aprender é a única coisa de que a mente não se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende".

Leonardo da Vinci

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Solidão - Paulo Coelho


World Press Photo




O fotógrafo espanhol Samuel Aranda venceu o 55º prémio World Press Photo com o retrato de uma mulher amparando um familiar ferido no Iémen.
 
A imagem, publicada no New York Times, foi captada no interior de uma mesquita transformada em hospital durante as manifestações contra o regime de Ali Abdullah Saleh. Além da sua força e beleza estética, é «um retrato simbólico da Primavera Árabe», de acordo com júri do prémio.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Três Perfeitos Atores





Memória do passado: John Cassavetes, Peter Falk e Ben Gazzara; grandes atores de outros tempos. Quem se lembra deles? Cassavetes morreu há mais de vinte anos, o ano passado morreu Falk, há duas semanas morreu Gazzara. Lendários e inesquecíveis em Husbands. Husbands é uma ode à masculinidade boémia, cúmplice e  festiva, às amizades «em grupo», ao «male bonding» e o «boy’s night out», pela conversa básica e pela diversão pura e poética. J.L.F.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Willie Nelson - Valentine


«O mais belo truque do Diabo é o de vos convencer de que ele não existe.»

Charles Baudelaire


Miles Davis - All Blues



"Não toques o que lá está. Toca o que lá não está." A frase  é de Miles Davis, talvez ajude a perceber como era a genialidade e a perfeição de Miles Davis. Em All Blues, do album My Funny Valentine, Miles gravou estes temas ao vivo, no Lincoln Center, NYC, em 1964. Estavam com ele George Coleman (sax), Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo) e Tony Williams (bateria).

«A realidade é uma ilusão, embora bastante persistente»

Albert Einstein

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Dona Antónia com jindungo e amendoim (crónica e mexericos sobre a vida de uma quitandeira de Luanda)



Para as quitandeiras de Luanda
                                                          
                                  
                                              II Parte

Mas a paixão tem meandros, há alturas que nos cega e nos torna surdos e autistas. Antónia andava enlevada pelo romance e nada nem ninguém a fazia voltar à razão. Mário era o mais novo de três irmãos e o único que tinha escapado a uma vida amarga de prisões e marginalidade. Diziam aqueles que os conheciam, que entre os três, pois devemos incluir o pai que também por lá passou, somadas as penas cumpridas no cárcere, dariam a vida de um homem até aos cinquenta anos. O pai passara dez anos atrás das grades, por roubo de automóveis, posse e negócios com armas furtadas e agressões a um polícia, e os dois irmãos, haviam sido condenados também por longo tempo, por deserção do exército, furto qualificado, proxenetismo, agressões e assaltos à mão armada a residências e roubos de carros novos em stands e garagens. No meio de tudo isto constava que tinha havido uma morte, durante o roubo de uma viatura, diziam alguns, ou teria sido quando se introduziram num apartamento e apareceu a judite, que há muito lhes seguia na peugada, mas ninguém confirmava nada. Um homem havia sido atingido a tiro, mas o corpo desaparecera e nunca mais se soube do rastro. Tratava-se de um vadio, viciado em drogas, bufo, colaborador da Judiciária e da Pide; diziam no meio que tinha sido ele o delator, o canário que cantara e que originara a fuga de informação para a polícia, por isso tinha sido executado. Só o Mário conseguira afastar-se desse caminho e todos reconheciam nele as qualidades de um bom pai e chefe de família. Apenas tinha uma propensão demasiadamente visível para as infidelidades conjugais. Ao conhecer Antónia, foi o mesmo que juntar palha ao fogo e em menos de um fósforo estava ateado o incêndio de repercussões inesperadas.

Encontravam-se em casa dela, a princípio, sempre ao fim do dia, quando Mário fechava a loja; demorava-se em casa da amante cerca de uma hora, entre as sete e as oito e só então voltava para casa, para perto da mulher e dos filhos. Mas pouco tempo depois, passou também a almoçar com a angolana; deixou de comer da lancheira, sozinho. Comia agora comida quente, acabada de fazer, quase sempre um bife, ou os pastelinhos de bacalhau de que ele tanto gostava, acompanhados de uma cerveja Cuca ou duas. Ele levava-lhe vinho português de garrafão e rissóis. Depois repousava nos braços dela, fechados no quarto e trocando mimos e carícias; deitavam-se e espalhavam a roupa pelo chão, suados, enlouquecidos pelo desejo e torturados pelo calor abrasador que penetrava pelo telhado de chapa de zinco, até que o Mário voltava para o trabalho e a Antónia prosseguia com a audição das cassetes do Nelson Ned, do Ouro Negro e do Trio Odemira, que ela adorava e que por essa altura fazia sucesso na metrópole e em Angola. Pedia-lhe às vezes que a levasse a conhecer o “caputo”, que era como ela chamava a Portugal. Eram dias de felicidade genuína. Ele era suficientemente gentil para lhe oferecer de vez em quando uma caixa de bombons, até mesmo vinho do Porto e de noite, para não dar nas vistas, levava-lhe mais revistas e histórias de amor. O arrebatamento de Antónia era tanto, que já se considerava como esposa do Mário e até lhe propunha fugirem os dois para o Congo belga, para Leopoldville. Dizia que aí eles poderiam começar vida nova, talvez iniciassem um negócio de fruta, que era o que ela conhecia melhor. Chegou a sugerir que ele se separasse da mulher e dos filhos, para viverem os dois longe de Angola; lembrava-se também da África do Sul, onde ouvira dizer que haveria melhores condições para os pretos como ela (palavras da Antónia).

Margarida era a mulher do Mário e já estava a par da história toda, da tremenda embrulhada em que o marido se metera. Cogitava há algum tempo como acabar com tudo aquilo, já lhe estava a subir a mostarda ao nariz, estava farta, sentia nojo dele e estava disposta a pôr termo a toda aquela merda (palavras da Margarida). Por várias vezes discutira com o homem e ameaçara tomar medidas sérias, podia ser que o pusesse fora de casa, ou mandasse alguém dar uma valente sova àquela megera. O marido negava tudo, ajoelhava-se aos seus pés, rogava que ela fosse compreensiva e deixasse de duvidar sempre do que ele dizia.                                                                                                       
Há várias semanas que Margarida fazia o mesmo de dia ou de noite. Por quatro ou cinco vezes foi ver, com os seus próprios olhos e confirmar aquilo que já desconfiava. Chamava um táxi à hora do almoço e seguia-o, escondida dentro do carro. Observou-o perfeitamente a entrar e a sair da casa do Cazenga, a beijar a mulata e a abraçá-la, pendurada ao pescoço do seu homem. Preparou um plano, queria dar uma lição àquela galdéria. Nem que tivesse que atirar-se a ela em plena rua, rasgar-lhe a roupa toda e deixá-la envergonhada, em cuecas na estrada. Até o soutien, se ela tivesse suficiente vergonha para o usar, ela lho arrancaria. Queria esbofeteá-la e deixar-lhe um sinal, marcá-la, para que se lembrasse da Margarida e nunca mais tivesse vontade de se meter com homens casados. Comia-lhe o fígado, se fosse preciso! (palavras de Margarida). Era de Viseu, terra do norte de Portugal e falava com os esses assobiados entre os dentes e a língua. Era uma mulher aparentemente cordial e nunca se fez contra ela a mais leve critica ao seu comportamento como cidadã. Mas houve um dia que uma vizinha lhe conheceu o génio, quando, por causa dos filhos, a outra resolveu dar uma bofetada a um dos seus. Margarida veio lá de trás com a mão na anca, descalça e quase despida, pois saíra da cama há pouco, ainda despenteada e descomposta. De tal maneira puxou os cabelos à fulana que a colocou de bruços no chão, arrastando-a dois metros pelo pátio do prédio. Provinha de uma estirpe de vendedoras de peixe do norte, nas lotas de Matosinhos e do mercado do Bolhão, no Porto. Ela própria vendera na praça de Viseu, em rapariga, até aos quinze anos, ajudando a mãe a escamar, a preparar e a pesar os carapaus, a cavala, os robalos e a sardinha, a tirar a tinta e a limpar os chocos. Só aos dezasseis anos acabara a quarta classe, já vivia com o seu primeiro homem - um trolha vindo da aldeia, completamente analfabeto, que não sabia escrever o nome, calceteiro e também peixeiro, aos sábados e domingos - num quarto alugado, uma cave apertada, húmida e negra, sem água, sem banheiro nem sanita. Lavavam-se na torneira do quintal, defecavam à noite, num balde e deitavam as fezes e a urina, num esgoto da rua.

Antónia vivia dias felizes despreocupada, mas sem saber, o seu futuro estava a ser cuidadosamente traçado.
Era uma quinta-feira, um dia igual a tantos outros, mas para Margarida era o único dia de semana pelo qual sentia uma certa aversão. À quinta-feira tudo podia suceder e ela ligava sempre este dia às coisas más. Era um dia ímpar como o dia 13 era ímpar e o sábado e a quarta-feira eram pares e o domingo nem uma coisa nem outra; o domingo situava-se numa zona neutra dos seus sentidos e a segunda-feira era um dia inútil, porque não servia para nada. Para a antiga peixeira do mercado do Bolhão, se um trabalho difícil e ingrato tivesse que ser feito, era mesmo à quinta-feira.
Que ela era maquiavélica não havia dúvida nenhuma, mas ninguém fazia ideia do nível alto de ciúme e raiva que carregava no coração. Nos últimos meses ela andara sub-reptícia, dissimulada, aparecia a horas diferentes em lugares inesperados, tais como armazéns de produtos farmacêuticos, drogarias de venda por grosso e atacado, entre sacos de juta e sarapilheira, a cheirar embalagens de veneno para ratos, a perguntar qual era a quantidade dessas substâncias que um ser humano poderia ingerir sem morrer e, junto a frascos gigantes de produtos corrosivos, ácidos tóxicos e mortais. Procurava informações, lia brochuras, rótulos e folhetos de instruções, sobre as propriedades inflamáveis da gasolina, até quantos graus poderia atingir um corpo em combustão, qual era o tempo de sobrevivência para uma queimadura de 3º grau. Margarida tudo leu e consultou. Estudou também as melhores facas do mercado, as mais longas e cortantes, analisou o poder de corte profundo de uma boa lâmina; comprou mesmo um leitão morto e treinou vezes sem conta, solitária, na cozinha, experimentando que força seria necessária para efetuar uma eficaz penetração com a faca. Chegou a comprar um facalhão para talho, o que causou estranheza ao Mário, que passou a partir daí a não dormir descansado e a pensar seriamente no que se estaria a passar na cabeça da sua antes tão sossegada e pacata mulher.
Decidiu-se pelo ácido sulfúrico e nessa quinta-feira encheu uma garrafa de plástico com dois litros de produto. Sabia que o encontro entre os dois adúlteros se daria por volta das onze da manhã, no quiosque, onde ela ia ler fotonovelas e estar ao pé dele na pouca-vergonha, aos abraços, beijos e risos de satisfação e luxuria. Meteu-se num táxi e seguiu para o Bairro do Cazenga, tendo pedido ao motorista para abrandar, à entrada do povoamento. Estava com os níveis de adrenalina no máximo e trazia nos olhos um brilho invulgar de ferocidade e crueldade. Margarida era uma fera em movimento. Há momentos em que o homem ou a mulher perdem o verniz e o raciocínio lógico próprios da civilização, que os torna seres contidos e moderados e então libertam os seus instintos mais primários, transformando-se numa máquina movida a ódio, raiva e ciúme. Estava tresloucada, fora de si, já não controlava as suas próprias reações. Antes de sair de casa ingerira bastante álcool, café e estimulantes, que lhe aumentaram a sensação de coragem e agora já nada nem ninguém a conseguiria travar.

Viu-a ao longe, de bata curta, acima dos joelhos, chinelas caseiras, lenço na cabeça e cinto largo que lhe moldava a cintura e subia o vestido até um bocado acima dos joelhos. Estava a manusear revistas, falava lá para dentro e ria-se de qualquer coisa, despreocupada mas excitada, notava-se a léguas, pela proximidade do homem. Não viu o marido, ele devia estar a arrumar os jornais ou a contar dinheiro. Margarida disse ao chofer que esperasse, que voltava num minuto. Dirigiu-se decidida para a outra mulher e parou algumas décimas de segundo, um passo à sua frente. Foi então que abriu a garrafa de dois litros de ácido sulfúrico e com toda a força que conseguiu arranjar, vinda do seu interior incandescente, lançou o líquido corrosivo sobre a cara e o corpo de Antónia. A maior parte do ácido atingiu-lhe a cara e o lado esquerdo do tronco. Antónia levou as mãos ao rosto e aos olhos e contorceu-se de dores. Parecia que tinha mergulhado dentro de um vulcão ou de uma panela a ferver. Quanto mais queria minimizar o ardor e a sensação terrível que lhe corroía a face, esfregando e limpando, mais o líquido em ebulição se entranhava na pele. A garrafa fora toda despejada, metodicamente, para cima da pobre mulher.

Margarida voltou a correr descontrolada para dentro do táxi e arrancou a toda a pressa. Mário saiu de dentro do quiosque assustado e, pelo cheiro penetrante e pelos gritos aterrorizados da Antónia percebeu que tinha que levá-la para o hospital. Em pânico, meteu-a no carro e guiou a alta velocidade, buzinando, para o Hospital de S. Paulo de Luanda. Antónia deu entrada nas urgências e verificou-se que tinha queimaduras de 2º grau ao longo do braço, subindo para o pescoço e pavilhão auricular. Mas o caso mais complicado estava na vista, mais exatamente no olho esquerdo que tinha ficado bastante danificado. O líquido penetrara na íris, queimara-lhe a pálbebra, arrancara todo o sobrolho e comera a arcada superciliar.

Mais tarde soube-se que Antónia cegara desse olho. Não havia nada a fazer, não havia tratamentos nem operações que lhe devolvessem a vista. Muitos e muitos meses depois, após internamentos, transplantes e operações plásticas para lhe restituírem a pele da cara e lhe darem um aspeto condizente com o seu antigo e bonito rosto, olhava-se para ela quando não tinha óculos escuros (que lhe davam um ar sinistro), e via-se um olho inexpressivo, branco azulado, baço, sem iris, com a córnea desfeita e uma cicatriz que os enxertos ainda não tinham conseguido desvanecer, a sobressair ao longo da pálpebra até ao osso zigomático. O olho esquerdo era agora um enorme glóbulo fixo, metálico, de uma frieza de aço. Passou a   ser conhecida como a Antónia zarolha, ou simplesmente a zarolha. Sempre muito aberto e desperto, devido à falta da pálpebra, o que víamos era uma esfera inerte, insone, e terrivelmente assustadora.

Não se sabe porquê, Antónia não apresentou queixa pela terrível agressão que sofrera.
Durante os dois anos seguintes ela pouco saiu à rua; sobreviveu à custa dos parcos angolares da pequena venda à porta de casa e de algumas idas à praça do Xamavu, para vender. Por vezes um amigo aparecia, com uma galinha e quiabos, ou peixe e farinha e pedia-lhe que fizesse uma boa muamba, ou uma cangica, para que recordassem outros tempos. Aí Antónia voltava a sorrir, desfazia-se em mimos, puxava das cassetes e do gira-discos e novamente se entretinha com o novo amante para o resto da noite.
Mário voltou logo ao seu negócio dois dias depois, mas agora tinha diariamente a mulher por perto, que ia levá-lo e buscá-lo ao emprego.
Passaram-se mais três longos anos, Antónia e Mário nunca mais se falaram, ele não passava pela sua rua e ela nunca mais se interessou pelo quiosque. Mas no fundo da sua alma, algo borbulhava há muito tempo, uma pressão incomodava-a, não sabia o que era, sentia um mal estar sempre que se lembrava dos últimos cinco anos da sua vida e um choque de placas continentais se formava cada vez com mais força dentro de si e o impacto teria a intensidade dos grandes choques  telúricos.             
Para a sua índole bem-disposta, Antónia achava que não havia nada que não pudesse ser resolvido à mesa, frente a um prato de pirão, ou a uma boa canjica e duas cervejas Cuca. Para ela, ter um amante não era nada demais. Tivera-os toda a vida, assim como era normal um homem ter duas mulheres. Em Angola, junto às classes mais populares, era vulgar um angolano ter duas mulheres e filhos com ambas. Sempre houvera e sempre haveria. Mas já não era tão corriqueiro para uma mulher, diga-se em abono da verdade. Embora estes fossem hábitos e costumes ancestrais da organização tribal angolana, esta sociedade híbrida padecia também dos efeitos, dos tiques e reflexos condicionados da elite machista da metrópole portuguesa. Mas não havia esse sentimento de posse e de propriedade em Antónia, de forma tão vincada como em Margarida. Também não era por adultério que se vingaria de alguém, dessa maneira tão doentia. Lembrava-se do marido, o Zeca, também ter tido duas ou três mulheres, fora do casamento e nunca sentira necessidade de pedir contas a ninguém.
Aos poucos a quitandeira foi recuperando a sua forma de viver, embora mais isolada e fechada com os seus pensamentos. Aquele lado da face doía-lhe e recorria a analgésicos para aliviar-lhe as dores lancinantes que por vezes sentia. O olho danificado estava em constante purga, escorrendo líquidos purulentos e criando infeções constantes. Precisava de combatê-las com pomadas e antibióticos, que lhe custavam pequenas fortunas. A cicatriz na face também requeria cuidados permanentes e todos os anos tivera que ser submetida a duas e por vezes três operações plásticas. Ficara sem dois bons pedaços de pele nas nádegas, que lhe foram enxertados na cara para minimizar as marcas deixadas pelo efeito da corrosão do ácido.
Uma ou duas vezes por mês, Antónia apanhava o velho autocarro para os pobres dos musseques, o autocarro do “munhungo” – termo angolano usado na época e que significava promiscuidade, coisa reles e sórdida, proveniente de contatos sexuais (naquele tempo, em Angola, para os que se lembram, embora não houvesse separação de raças, havia essa nítida diferenciação de classes nos transportes públicos) - coberto de pó, que fazia a linha do Cazenga e descia até á cidade, à procura de medicamentos, na farmácia habitual, ou para levantar as suas pensões, agora também usufruía dessa outra, de invalidez. Quase por acaso, num dia em que escolheu um trajeto diferente, deu de caras com Margarida, que descia de um prédio com o marido, o seu ex-amante de há seis anos. Antónia recuou, para uma viela lateral, eram duas e meia da tarde e ninguém a viu, pois eles logo se meteram no carro e saíram do estacionamento. Era natural que morassem ali perto. Logo que viraram costas, foi ver dentro do prédio as caixas do correio. Lá estava o nome dele na caixa 3ºB. O sangue fervia-lhe nas veias e uma sensação misteriosa percorreu-lhe o corpo. As têmporas latejavam doridas, parecia que estoiravam e todo o lado esquerdo do rosto se contraiu, provocando-lhe dores agudas e insuportáveis. Teve que levar um lenço á vista para secar o líquido viscoso que escorria do olho. O estômago embrulhou-se, sentiu um aperto junto ao baixo-ventre e doeu-lhe a vagina, cujos lábios pulsaram como batidas taquicardíacas num coração cansado.
Voltou para casa e nesse dia foi assaltada por um carrocel de recordações, mágoas e ressentimentos. Pela primeira vez sentiu ódio e um desejo intenso, declarado, de vingança. Sentiu-o crescer, avassalador, vindo de qualquer zona obscura dentro de si; descobriu então que algo muito sombrio nascia nas profundezas da sua alma; como um feto morto e apodrecido, que trouxesse no ventre e tivesse que expulsar, para conseguir sobreviver. Duas garras monstruosas, poderosas, tomaram conta do cérebro de Antónia e qualquer coisa lhe dizia que já não poderia escapar. Nessa tarde, fechada no quarto, teve uma série de pressentimentos e maus presságios. Viu, repetidamente, projeções de animais e bichos fantasmagóricos, de um só olho, também baço, azulado e inexpressivo como o seu, bestas com chifres, bossas e caudas que a ameaçavam como chicotes, a respirarem vapores sulfurosos de enxofre, e amoníaco, sobre ela. À noite, prolongaram-se as visões e febril, teve pesadelos ainda mais sombrios. Num cenário de tormenta, de nuvens pesadas e negras, um clarão iluminou um local, um pátio e viu outras mulheres que fumavam sentadas; fumavam e rezavam, pareceu-lhe, rezavam muito, mas era tudo muito confuso, não percebia nada do que via. Havia também mulheres armadas e escutavam-se vozes, ordens rigorosas para cumprimento de horários inflexíveis. Viu-se a ela própria, que trabalhava, com uma bata indistinta, suja, igual às outras, dentro de paredes e muros muito altos, que chegavam ao céu, tingido de fuligem, como se uma tempestade se aproximasse. Viu o seu futuro, o amanhã, os dias seguintes, cobertos por uma mancha de cinza vulcânica. Havia grades por todo o lado, portões de ferro e ferrolhos que se abriam e fechavam continuamente.
Aquela mulher tinha um olhar fixo e obcecado. Nesse dia não falou com ninguém e o condutor do autocarro achou estranho que ela não o cumprimentasse como habitualmente. Afinal conheciam-se de crianças e ela sentava-se sempre perto dele, a conversar durante o trajeto. Comprou o bilhete e refugiou-se sozinha nos bancos traseiros. Desceu perto do prédio do Mário e deixou-se estar, sentada, junto a uma entrada lateral de frente para o carro. Estava atenta a tudo, tinha a pele a queimar de ardor da febre. Há duas noites que não dormia. Sonâmbula, o sangue fluía aos solavancos, nas artérias e de cada vez que o seu coração bombeava ela sentia as carótidas que pulsavam. Escutava, com a sensibilidade aguda de um animal predador da selva, pronto a lançar o bote sobre a vítima, todos os ruídos e movimentos do prédio. Ouviu nitidamente o elevador que desceu às duas e quinze desse dia. Ouviu as vozes dos dois, que conversavam calmamente e ouviu também perto de si, os saltos dos sapatos daquela mulher que um dia, há muitos anos, lhe despejara um garrafão de ácido para cima da cara, originando a partir daí, toda uma vida de sofrimento e torturas horríveis. Estava de costas para eles. Passaram muito perto de si e foi então que Antónia se dirigiu para Margarida e chamou-a: - Olha…, e não disse mais nada. Quando Margarida se virou, Antónia puxou da faca enorme que escondia entre as roupas e empurrou o braço com quanta força tinha para dentro do abdómen da outra mulher, quase à altura do coração, num movimento ascendente, de baixo para cima. Margarida caiu e logo se formou à sua volta uma poça enorme de sangue pegajoso.
Mais uma vez, pela segunda vez na sua vida, Mário meteu uma mulher no carro e levou-a para o Hospital Maria Pia. Depois de várias horas de trabalho intenso, dos médicos e enfermeiras a tentarem recuperar Margarida, esta faleceu ao cair da noite, com um pulmão perfurado e o coração atingido irremediavelmente pela comprida faca de talho, boa para desmanchar carcaças de animais.
Nunca antes Antónia tinha pensado que as coisas se precipitassem desta forma, nem sequer arquitetara nenhuma vingança ao longo desses seis anos. Antónia foi presa, julgada e condenada a dez anos de prisão por homicídio, tendo o juíz decidido que fora uma ação premeditada. Depois reduziram-lhe a pena, tendo apenas cumprido sete anos na cadeia de Luanda, entre os anos de 1968 e 1975, na Ala C, conhecida como “lugar do pecado,” entre as próprias presidiárias, sendo que a revolução de Abril amnistiou-a desse crime. Mário tornou-se um homem diferente, isolou-se com os filhos e dois anos depois do sucedido voltou para Portugal, para viver perto de familiares afastados, numa aldeia no norte, para os lados de Lamego. Tem agora um pequeno restaurante com fados e guitarradas à noite, vive bem e já pensa em casar novamente.
Ao sair da prisão Antónia sentiu que lhe tiravam um fardo de cima. Tinha uma vaga sensação de altivez e leveza de espírito que antes não tinha. Achava que tinha pago a dívida à sociedade e também achava que fora feita justiça, embora pelas suas próprias mãos. Nunca acreditou que as autoridades policiais prendessem e os juízes condenassem Margarida, uma mulher da sociedade, com roupas caras e amigos em todo o lado. Pensava que, mesmo que apresentasse queixa, era um caso perdido por natureza.  
A mulata era uma mulher que apenas fizera a terceira classe. A sua vida social girava em torno de pessoas de igual instrução, gente simples do povo, gente que nada sabia sobre livros, nem cursos superiores. Mas como mulher de espirito aberto, extrovertida, tinha uma espontaneidade e uma capacidade de criar relacionamentos, afetos e cumplicidades ímpar; sempre se sentiu forte e segura e nunca lhe passou pela cabeça que para ter alguma coisa na vida teria que se oferecer a alguém ou bajular fosse quem fosse. Quando se entregava a um homem (e pela sua vida tinham sido inúmeros, aqueles que com ela se deitaram) fazia-o porque gostava da doce sensação de apertar um corpo viril, de homem, por vezes suado, nunca se interrogando onde começava e onde terminava o que era considerado  socialmente correto. 

Regressou á sua vida habitual, à venda dos quitutes na pequenina bancada, frente ao portão de casa; voltaram também as idas á praça para vender os produtos, aos sábados. Recuperou a alegria de antigamente e há dois anos que vive com um rapaz mais novo. Trouxe-o para sua casa e parece que se dão muito bem. Acabaram-se as festas e almoçaradas ao sábado, agora apenas se reúnem com os amigos dele e alguns indefetíveis dela. A mãe, a avó Francisca faleceu há um ano e para o funeral só o velho amigo que almoçava no quintal apareceu, agora um ancião vergado pela passagem do tempo, com o andar lento e arrastado, vestido de preto, com um fato puído, muito gasto e remendado.
Antónia é agora uma mulher mais madura, mas marcada. O seu caminho foi longo, difícil e conturbado. Uma grande cicatriz invisível traçou dentro dela um trilho acidentado de pedras e duros obstáculos. Nos primeiros anos de prisão, não conseguia olhar para ninguém; escondia a cabeça na almofada, chorava e rezava. Mas sua fé, abalada, vacilou. O seu mundo de convicções ruiu.
Perguntava-se porque é que Deus, aquele em que toda a vida acreditou, sim, porquê que Ele a colocou frente a esta montanha intransponível, tão alta e tão íngreme que ela agora, perdida e desnorteada, não sabia como escalar e a deixou mergulhar nesse mundo de trevas? Como frágil humana não viu Deus quando mais precisou e orou por ele. Era como se tivesse descido ao grau zero da sua condição de mulher. Uma vingança se sobrepôs a outra igual. Algures, a meio da vida, alguém ou algo exterior a ela e ao seu universo quotidiano, a puxou e arrastou para este inferno de julgamentos, polícias e prisões que nunca mais terminavam.
Mas o tempo foi passando e a paz vive agora dentro de si, no seu âmago. Sabe que superou todos os obstáculos e os derrotou, na mais rude prova da vida. Mas também sente que foi graças a ela própria,  à força incomensurável do seu caráter, à enorme vontade de viver e de voltar aos amigos de antigamente, que conseguiu vencer os demónios que durante sete anos se introduziram na sua vida. Não sentia que tinha tido ajuda externa de ninguém, nem de nenhuma força ou entidade superior, nem Deus. Cerrou os dentes e levantou a cabeça, mesmo dentro da cela. Enquanto esperou e orou por Deus, mais se sentiu confundida e desorientada.
Hoje, aos setenta anos, esta mulher, que um dia foi a mais bonita quitandeira de Luanda, filha e neta de escravos, é frequentemente assaltada pelas lembranças mais antigas da sua infância. Revê imagens de memória, como fotografias nítidas de quando era uma menina, vestida com um ligeiro pano rasgado à volta da cintura a tapar-lhe a púbis. Lembra-se dos banhos no rio, quando o seu pai a levava a nadar nas águas calmas e quentes, dos saltos com a criançada e dos primeiros mergulhos nas suas correntes serenas, perto da sanzala pobre de palhotas de barro e capim e de como ela ria e gritava desprendida, de um modo infantil, lá longe, no tempo e no espaço, no Norte de Angola.
No mais ínfimo átomo do seu ser, sabe que só há um caminho a seguir e a estrada à sua frente está agora limpa e em paz, banhada pela luz do dia, tranquila e serena, como os rios da sua infância.
J.L.F.

Nota do autor: Este texto, o meu texto, é uma peça “naif”, um trabalho de artesão rude e em bruto. No entanto, tem a pretensão de se imaginar uma obra literária. Será? Não será? Àqueles que o lerem dou o privilégio de avaliar. Não foi revisto nem corrigido por ninguém, senão por mim próprio. Apenas obedece a duas ou três regras gramaticais básicas e muito simples: a da vírgula, do ponto final e do ponto final parágrafo.
 Desejo apenas que passem uns bons momentos ao lado desta bela quitandeira de Luanda e que conheçam melhor estas mulheres simples, espontâneas e verdadeiras, como verdadeira e sagrada é a terra que um dia as gerou no seu ventre. Assim, longa vida para elas e bem hajam aqueles que sentirem algum afeto e simpatia por esta realidade e por estas velhas histórias do passado.
J.L.F.                            
                                                    
Baía de Luanda
                                                          





terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Dona Antónia com jindungo e amendoim (crónica e mexericos sobre a vida de uma quitandeira de Luanda)

                                                  

Quitandeiras de Luanda

                                                  
                                                       I Parte


Para as quitandeiras de Luanda


Este é um pequeno contributo para que se perceba um bocado melhor alguns costumes de Angola. Ao entrarmos na idade avançada, sentimos a obrigação de contar experiências, certos de que servirão para que se lance alguma luz sobre tudo isto. Se o conseguir, dormirei feliz. Não digo que esta história é verdadeira, nem que apenas se trata de uma ficção. Acredite se quiser. Mas uma coisa vos garanto: os costumes são verdadeiros e ainda hoje existem em Angola. É afinal o que importa.


Dona Antónia era uma mulata de se lhe tirar o chapéu. Conhecia-a no Bairro do Cazenga, em Luanda, numa bela tarde em que fui com o meu amigo, Tony esperar uma certa menina, Mila, que ali morava e lhe preenchia os pensamentos de dia, e os sonhos nas noites inquietas dos seus vinte anos. A caminho do encontro, fui-me deixando para trás, obedecendo às instruções do meu companheiro, isto para que ele pudesse arriscar um pedido, ou segurar-lhe a mão e, com um bocado de sorte, talvez se embrenhassem por aspetos mais íntimos e carinhosos.

Andava-mos há uma boa meia hora e eu, cansado, encostei-me a um daqueles candeeiros de rua, baratos, baixos e raquíticos, típicos dos anos sessenta, nos bairros suburbanos de Luanda.

A rua tinha de nome Dr. Marcelo Caetano e cruzava com a do Dr. Oliveira Salazar. O asfalto ainda não chegara àquelas paragens e o pó levantava-se em qualquer altura, bastando para isso que o vento deixasse escapar um leve suspiro. Qualquer coisa me dizia que, naquela casa, havia todo um mundo desconhecido que eu, ainda não havia contatado. Naquele sítio, em frente à porta, respirava-se um ar diferente, os cheiros multiplicavam-se e eram mais penetrantes. De dentro da pequena casa saía um odor a perfume, do tipo económico, vendido ao litro, ligeiramente agoniante e um ambiente de festa e convívio transpirava cá para fora; as janelas abriam-se, pintadas com a cor da bandeira portuguesa e os lençóis, pendurados para fora, até meio da tarde, espalhavam-se pela pequena janela, empurrando leves cortinas de pano para os lados, deixando ver uma mulher bonita, na casa dos trinta e poucos anos, de pele bronzeada e peitos proeminentes, provocantes, dentro dos generosos decotes de uma bata florida, colorida e transparente.                                                                                                             

Dona Antónia andava pela casa, ora arrumava o quarto, ora ia à cozinha, onde podíamos ver, em retratos pendurados junto aos tachos e frigideiras, o busto do Cardeal Cerejeira e da Virgem Maria, a observarem a feitura da sopa e dos guisados. Enquanto vagueava pela pequena casa, cedida pelo governo ultramarino em troca de uma renda simbólica - de quarto, sala, uma magra cozinha e uma atrofiada casa de banho sem banheira - ia espiando a panela ao lume, ou falava com alguém que passava, debruçada à janela: uma vizinha, um amigo, ou o homem da tabacaria que lhe vendia as revistas de escândalos amorosos e crimes passionais e as fotonovelas brasileiras, de amores pecaminosos e pecados veniais; ou mesmo o velho pobre e solitário, amigo da bebida, de andar periclitante, que tropeçava diariamente na banca dos quitutes de Dona Antónia e a quem ela chamava para as traseiras da casa, para matar o bicho que lhe atazanava o estômago. Sentava-o num banco, à sombra da goiabeira e oferecia-lhe um copo de palheto ou dois, e uma sandes feita dos restos do almoço. Qualquer passante se sentia atraído a olhar para o interior da casa, que chamava a atenção, primeiro pela banca, com os seus cheiros a frutos tropicais e à bebida fermentada do milho ou do abacaxi e depois pelo sons musicais, das canções da moda, que normalmente se ouviam desde o início da rua.

O portão de madeira, já meio partido e desengonçado, no meio de dois pilares de cimento toscamente caiados, onde num deles se podia ler o número da casa pintado à mão e que também prendiam uma grossa rede que delimitava o pequeno jardim, onde cresciam ervas e capim, com as flores já secas vergadas pelo calor implacável, constituía a única barreira entre nós e o paraíso, que se julgava ser aquela casa. Uma pequena banca de doces angolanos, com tabletes de amendoim torrado e açúcar mascavado caramelizado, docinhos de coco e bananas, maçarocas assadas, romãs, estava sempre exposta, com um considerável montinho de moedas, tapadas pela dobra da toalha, que a Dona Antónia vigiava, da sua janela, assim como aos sumos de goiaba e ananás, e o marufo de cajú, que sempre rendiam mais uns bons tostões, à proprietária da casa.
Vivia com a mãe, uma velha surda, que cheirava a cânfora, a óleo de lamparina e velas de oratório, na devoção da sua santa preferida, a N.ª Sra. da Muxima; espalhava escapulários e saquinhos de pano, cheios de pós duvidosos e de proveniência desconhecida, muito usados e surrados, por onde passava. A anciã, magra, ossuda e curvada, apoiava-se numa bengala de cabo curvo e era tatuada nos braços e na cara; usava dezenas de pulseiras e cordas nos pulsos e atravessara o tempo das duas guerras na Europa. Era filha de uma escrava trazida de S. Tomé e ela própria ainda fora propriedade, durante breves anos, na sua infância, de uma família de roceiros do norte de Angola. Aos doze anos servira de amante ao capataz da roça que lhe fizera o primeiro filho. Este morrera sufocado pelo capataz, dois dias depois de nascer, quando soube que ela dera á luz. Durante o tempo quis, dos Reis, de seu nome, entrava na pequena cabana e usava-se de Francisca, que dormia sobre uma esteira, no chão de terra batida, à entrada, perto do quarto dos pais. Nas noites de bebedeira, dos Reis agredia toda a gente, batia em Francisca e no pai e por várias vezes abusou também da mãe. Dos Reis era branco e dominava em toda a roça. Tratava os negros escravos como animais, castigava-os a seu belo prazer, quando queria e como queria. O seu castigo predileto era amarrar os homens a uma árvore e mandá-los chicotear por outro escravo, até as costas se transformarem numa manta de sangue ou até caírem para o lado, desfalecidos e a morrer de tanta tareia.                                                                                                                                                    
Alguns anos depois Francisca tivera outra filha, a quem chamara Antónia, de um mestiço de olhos claros, serviçal na roça, que com ela viveu alguns anos, pouco tempo depois da morte de dos Reis. O antigo capataz aparecera morto no bananal, para lá do cafezal, degolado e com as tripas à mostra; durante vários dias os escravos fizeram romaria ao local da morte, tendo alguns levado como recordação restos de roupa e órgãos do seu corpo para ostentarem como recordação nas suas casas. Quando o roceiro soube da morte do capataz, chamou os escravos e reuniu-os a todos no pátio. Perguntou a um por um quem tinha morto o seu homem de confiança. Como ninguém se acusou, ele próprio tirou a velha pistola do coldre e disparou à cabeça de um dos escravos, à queima-roupa.

A avó Francisca tinha o seu quarto numa pequena construção de madeira, construída ao fundo do quintal e lamentava-se por não ter casa de banho, tendo que atravessar todo o terreno quando fosse absolutamente necessário. Só lá saia de dentro para isso e quando o velho se sentava no banquinho. Então os dois entabulavam um diálogo em língua nativa, o quimbundo e ela, levantava a voz, puxava pelas lembranças, queria saber de velhos parentes e amigos, com os pequenos farrapos de memória que ainda lhe restavam, sempre muito entusiasmada e o velho ria-se e baixava os olhos reverente, mas feliz.
Dona Antónia nascera no princípio dos anos cinquenta, talvez até antes, aí para 47 ou 48, depois da Guerra e pelos ecos que recebera da Europa, habituara-se às restrições e à vida poupada. Aprendera a divertir-se e a passar bons momentos, apenas com o que Deus lhe punha ao seu alcance. Por isso, embora gostasse de festas e pândegas, resumia tudo a boas almoçaradas no quintal, ao sábado, com dois ou três amigos de confiança, sempre homens solteiros, que levavam as bebidas e os aperitivos, como camarões minúsculos, ginguba e cerveja e a Dona Antónia apenas se preocupava em cozinhar a boa muamba, o cozido à portuguesa, a feijoada com todos, ou a saborosa cachupa de Cabo Verde. Normalmente, eles até davam os quiabos, o feijão e as carnes, ou mesmo a galinha para a cabidela, levados um ou dois dias antes, quando ela estivesse sozinha, nos seus preparos matinais, ao sair do banho, ainda molhada, fresca e apetitosa que nem um alface.
Nesses dias de festa, o leitor de cassetes e o gira-discos de 45 rotações funcionava sem parar, até tarde da noite, ligados a duas pequenas e roufenhas colunas de som, penduradas nas traves do estendal da roupa, presas aos toscos paus e amarradas por arames. A música era variada, principalmente brasileira, de um ou outro cantor angolano, mas o forte, nessas tardes de fartura e paixão, era mesmo o Agnaldo Timóteo, o Teixeirinha e o Roberto Carlos, nos seus temas mais românticos.
 Então, depois do almoço que se prolongava pela tarde dentro, já com os estômagos repletos da cangica e pirão, aguardavam sentados a dormitar, até que o sol se começasse a espreguiçar sobre a linha do horizonte e a luz branca se desfizesse, suavizando-se em tons quentes e esbatidos, bem mais propícios aos afetos; e era quando apareciam uma ou duas amigas da Antónia, à procura de companhia para o resto da noite. Já ao escurecer, com o fim do dia saltando para dentro da noite, tornando-os a todos mais doces e ternos que nunca, levavam mutuamente o camarão e as rodelas de chouriço e paio à boca, presas por palitos, bebericavam cerveja pelos mesmos copos e dançavam agarrados, abanando exageradamente as ancas, roçando os membros eretos e viris nas coxas femininas. Mais tarde, quando ninguém já quisesse saber de ninguém, deixavam que o Agnaldo Timóteo lançasse para as estrelas a sua voz poderosa e refugiavam-se pelos cantos escuros do bairro, apalpando-se e fornicando de pé, entre as paredes das casinhas pobres do bairro do Cazenga. Até Dona Antónia, desejosa de sexo, abria as grossas pernas, deitada na nobre cama, que em tempos dividira com o Zeca, o seu marido, falecido há cinco anos pela tuberculose e fazia amor longamente, com um novo parceiro, deixando-se depois adormecer pela madrugada, acalmada e saciada como uma leoa selvagem, no seu mato privativo.
Apresentaram-me a Dona Antónia, com quem eu a princípio fiz alguma cerimónia, tratando-a por senhora, o que prontamente desfez, agarrando-me e abraçando-me pelas axilas, beijando-me sofregamente, nos cantos da boca e encostando demasiado o seu cabelo aos meus ouvidos. Apresentou-nos a ambos uma outra pessoa, um amigo, que logo no sábado seguinte me levou a uma festa nessa mesma casa, agora pelo aniversário da dita senhora.
–“Vais conhecer uma grande mulher, depois dizes-me como foi, o que achaste dela. Dessas é que eu gosto que nos ensinam o que é a vida”, disse-me o meu amigo antes de chegarmos a casa dela.
Antes de entrar deixei duas moedas à entrada e meti ao bolso um doce de coco e amendoim. Não eramos muitos, talvez quatro ou cinco homens, para três ou quatro raparigas ansiosas por dançar e agarrarem um parceiro competente. Almoçamos muamba, que diga-se estava exageradamente picante. Antónia deitou algumas piadas, sobre a sexualidade masculina, exacerbada pelo efeito do gindungo, que como ela dizia, nos faria ter mais pau para as garinas. Se quiséssemos ela tinha “pau de Cabinda”, bastava pedir. Comemos de pé, em pratos de folha de alumínio. Bebi duas ou três cervejas saídas de uma selha com gelo, onde metíamos os braços e saiamos de lá com eles molhados.
A noite foi boa e cálida, dançou-se pela madrugada dentro, os pares colaram-se livremente, abraçaram-se e beijaram-se sob a batuta da Antónia, que desaparecia de meia em meia hora e voltava sobre-excitada, de queixo levantado, corada, com as narinas largas procurando o ar, fora daquele ambiente demasiado quente, com a roupa mexida e os seios maciços arfantes de ansiedade.
Alguns episódios da vida de Antónia foram-me contados muitos anos mais tarde, por um acaso excecional, à mesa de uma cervejaria, num jantar de amigos, nessa mesma cidade de Luanda que me viu nascer e crescer e que eu palmilhava da Mutamba ao Bairro Operário, não deixando que ninguém conhecesses a minha cidade melhor do que eu. A conversa corria, animada e por efeito das cervejas, começou-se a divagar sobre conhecidos de outros tempos. Foi quando o meu amigo Dino se lembrou dessa casa particular, afamada, no Cazenga, onde, por coincidência, por lá passamos os dois, várias vezes. Liguei alguns fios, ao que já sabia e reconstruí o passado, juntando farrapos e colando esta manta de retalhos. O efeito do tempo capacita-nos de uma visão mais lúcida sobre as coisas e os fatos. Ou dá-nos a faculdade de os transformar e pintá-los com novas cores e num novo cenário. De qualquer forma, Antónia permanece intata no baú das nossas recordações e é o seu legado de alegria e hábitos espontâneos de convívio, profundamente arreigada e enraizada na terra angolana, que até hoje perdura.
Após a morte do Zeca, o marido, Antónia ficou a receber uma pequena pensão do Estado, mas para manter o seu nível de vida, tinha que acrescentar alguns proventos à magra reforma. Para isso tinha uma atividade extra, normalmente ao domingo e algumas vezes também ao sábado, quando não recebia amigos lá em casa. Podia-mos vê-la na praça, entre outras mulheres, vestida com os trajes típicos das vendedeiras de Angola – as quitandeiras - que a faziam mais velha, com os panos traçados à cintura e no largo peito, guardando o dinheiro amarrado num nó na ponta do tecido, na anca. Sentava-se atrás de uma quitanda, no chão, ou num pequeno banco, com os produtos espalhados à frente, em cestos de vime, ou sobre esteiras, falando alto para as outras mulheres. Era uma algazarra tremenda, as mulheres chamavam os clientes e regateavam preços, ou elevavam as vozes estridentes contando histórias entre si, histórias do dia-a-dia, da vida que seguia o seu fluxo constante, ao ar livre, sob o céu abrasador, da enorme terra de Angola. Era como se tivéssemos entrado num outro mundo, o das quitandeiras de Luanda, a exibirem as cores diversificadas das frutas, das mangas e dos tamarindos, dos paus para escovar os dentes, das raízes e das folhas de tabaco, verdes e amarelecidas, de cheiro acre e intenso, que se propagava pelo ar, do gengibre, do óleo de palma, do mbrututu para o fígado, do gindungo, dos pós misteriosos, das ervas curativas e das suas fórmulas ancestrais e secretas. 
Antónia destacava-se pela pele mais clara e pelos olhos castanhos e alegres, que pareciam interrogar e sorrir continuamente, mas que sabiam como viver num mundo difícil, que ela dominava a seu modo, moldando-o à sua vontade e prazer, como num passeio de domingo, em parte graças à sua beleza selvagem e ao genuíno magnetismo que exercia sobre os homens e à simplicidade do seu caráter. Naquele tempo, era hábito as mulheres negras mais velhas fumarem o tabaco em folhas, e colocarem o morrão aceso dentro da boca. Mas esse não era hábito da Antónia que se ria das companheiras e dos seus costumes mais caraterísticos. Era uma boa amiga, insuperável nas horas de diversão, à maneira própria dos angolanos.
Houve um tempo em que se agravaram as dificuldades, logo após o passamento do marido e lembro-me de ver a sua figura bonita, com o olhar divertido, os braços fortes e carnudos, sentada junto aos Armazéns do Minho, em plena Mutamba, na baixa de Luanda, vestida com panos tradicionais, com o seu aparato de ananases e mangas, arrumadas num largo balaio, na esquina mais concorrida da cidade. Ao fim do dia arrumava tudo e transportava o que sobrara na cabeça, até à paragem do autocarro que a levaria até aos confins da cidade, para a sua casa no bairro do Cazenga. Naquela época todos a conheciam e não havia quem não lhe comprasse um abacaxi, mamão ou cocos.
Mas em pouco tempo desapareceu da Mutamba e novamente era a Antónia das almoçaradas ao sábado, do suor dos corpos e das festas que se prolongavam pela madrugada dentro, dos risos noturnos das mulheres que procuravam parceiros ao sábado, ansiosas por descarregar a tensão e fazerem os homens felizes, nas noites quentes da cidade disponível para o prazer. Antónia era uma mulher curiosa, na sua maneira de vestir. Só usava roupa tradicional quando exercia a sua profissão de vendedeira de rua, de quitandeira. Nos dias de festa, usava os seus vestidos e diga-se, transformava-se numa citadina, descontraída, e arrojava-se nas batas curtas e nas saias provocantes.
Contou-me o Dino este caso, passado com o vendedor de revistas, com quem a Antónia andava embrulhada durante a semana. De tanto passar pela casa diariamente, conversar alguns minutos à porta e depois convidá-la para se dirigir ao seu quiosque para ver as novidades em matéria de fotonovelas e revistas de atrizes de cinema e do teatro, Antónia começou a demorar cada dia mais tempo nessas idas à tabacaria. Encostava-se aos expositores, lia e relia as publicações e as últimas notícias desse mundo de sonho e romance, que ele depois lhe emprestava. De vez em quando o Mário saía do balcão, contornava os escaparates e abraçava-a longamente pela cintura, e vezes houve em que lhe beijou a nuca, enquanto a Antónia lhe afagava o pescoço, com as mãos papudas e nervosas. Mário era um português a viver em Angola há muitos anos. Tantos, que ele próprio já perdera a conta. Conhecia Luanda como ninguém e da sua boca saíam todos os calões e termos correntes das ruas. Começara a trabalhar muito cedo e aos 35 anos já tinha o seu negócio de revistas e jornais. Ela andava pelo beicinho por ele, morria de amores pelo Mário, já não conseguia esconder e ele não desdenhava aquele naco de boa vida. Mário era casado, tinha dois filhos e sabia-se à boca pequena, no bairro, que também tinha uma mulher demasiado ciumenta e que se este “affaire” clandestino continuasse, Antónia teria problemas com a dita senhora.
  
                                                                                                                                 
                                                                                                                                 (continua)


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Pop objects and icons from the Guggenheim collection, NYC




Roy Lichtenstein, Preparedness, 1968 (detail). Oil and Magna on three joined canvases, 304.8 x 548.6 cm overall. Solomon R. Guggenheim Museum, New York 69.1885. © Estate of Roy Lichtenstein

Wynton Marsalis - You Don't Know What Love Is

Os Sete Pilares da Sabedoria




"Todos os homens sonham, mas não da mesma forma. Os que sonham de noite, nos recessos poeirentos das suas mentes, acordam de manhã para verem que tudo, afinal, não passava de vaidade. Mas os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis. "

T.E. Lawrence: "Os Sete Pilares da Sabedoria"                                           

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sem papas na língua



Manuel José é um homem com ideias próprias. Não manda recados, não tem papas na língua, chama os bois pelos nomes. È idolatrado no Egipto e sabe retribuir esse carinho. Não pode sair à rua, tal é a popularidade que granjeou, e quando sai a pé, chega a reunir à sua volta cem ou duzentos adeptos do clube onde presta serviço. Algarvio dos sete costados, é portanto um homem com a coluna vertebral bem direita.

 Toda a gente sabe o que se passa no Egipto e todos viram na televisão os acontecimentos no estádio de futebol em Port Said, no nordeste, entre o Al Ahly, do Cairo - a equipa que M. J. lidera há muitos anos e que fez dela quatro vezes Campeão Nacional e vencedor de quatro Ligas dos Campeões Africanos, duas Supertaças de África e duas Supertaças do Egipto - e o Al Marsi, o que o torna o treinador com mais títulos internacionais do futebol português.
O Egito atravessa uma fase conturbada, tumultuosa, de golpes e contra golpes, ninguém sabe no que aquilo tudo vai desembocar e vozes a denegrir esse país são mais que muitas. O vox populi nestas alturas vai todo numa só direção: é gente incapaz e só querem é guerra, mortes e chacinas. Também é normal que assim seja, tudo nos leva a duvidar que realmente desejem paz e tranquilidade. Mas as grandes mudanças não se fazem só com palavreado e esperemos que a montanha não para um rato, nem que se dê razão a quem diz que é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. 

Quando todos esperavam que M J. abandonasse o Egito, alegando falta de condições para trabalhar e com isso exigisse, como todos fazem, choruda indemnização ao Al Ahli, eis que M.J. surpreende-nos com a decisão de voltar já de seguida para perto dos descendentes de Tutankamon, novamente para as areias do deserto, para a terra de Abdel Nasser. Abordado pela imprensa à sua chegada ao aeroporto de Lisboa, M.J. faz um elogio rasgado ao povo egípcio, diz que é um povo caloroso, excecional e que ele próprio tem uma relação com eles de tal maneira intensa que não sabe bem donde é que surge tanta empatia. Faz-nos crer que os espíritos dos faraós se integraram na sua mente e o transformaram num agente da concórdia, acima do bem e do mal. Faz bem M.J., em ter esta forma de estar na vida, sempre independente, direto, frontal, não-alinhado com a previsibilidade e com as opiniões de quem não sabe, não se informa, mas tudo pensa conhecer, tudo pensa dominar.

 M. J. vai continuar no Egito, até quando nem ele sabe, talvez um dia pense passar a sua velhice entre as múmias e as pirâmides, mas uma coisa eu sei: M. J. é um príncipe dos desertos, um homem das Arábias.

 J.L.F.