Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


domingo, 23 de junho de 2013

O VENENO MORTAL DOS ESTEREÓTIPOS


Os estereótipos andam por aí. Cuidado com esses vírus, tão nefastos como a gripe das aves, tão venenosos como o "antrax", tão mortíferos como os esporos de rícino.
As classificações abusivas, as teorias espúrias e de qualidade duvidosa, expandem-se tanto à esquerda como à direita.
Não há nada como parar para pensar. Os estereótipos envenenam o sangue, enlouquecem quem começa a professar estas ideias. A tendência é diabolizar, criminalizar tudo e todos. Na voragem, esquecem-se os genuinamente corruptos e os seus corruptores. É preciso raciocinar. Desligar do ruido. Ouvir as vozes mais lúcidas. Fechar os estereótipos a sete chaves. Esperar que implodam por si; ou mandá-los lá para uma fortaleza do Ártico, para que só se possam libertar depois de uma catástrofe nuclear. Se calhar nem isso. O que eu quero é estar bem longe dos estereótipos.

A Senhora Dilma Rousseff, do (PT) Partido dos Trabalhadores, e o seu mentor — o ex-Presidente Lula da Silva; o construtor do milagre económico e a sua pupila e protegida, a senhora Presidenta, eleita em 2010 por 56,05% de votos. Até há dias cantavam-se loas ao Brasil e às políticas deste executivo. Que continuava na senda desse milagre. Hoje já não é bem assim. Amanhã os dois serão enviados para uma fortaleza virtual — a do esquecimento — por maus serviços ao país. Nos anais da História, ficarão os retratos a sépia, descoloridos, deste casal, e de um consulado a dois, que pretenderam deixar a sua marca póstuma, imperial, mas que caem em desgraça, sucumbem e são levados à ruína, ao tentarem construir na nuvem, um império de areia, sobre focos disseminados de corrupção, e sonhos dignos de Césares. O tempo se encarregará de efetuar o seu próprio julgamento. Por enquanto estão no purgatório, à espera de reabilitação. Pessoa da minha estima, lá do seu canto, na cidade de S. Paulo, escrevia-me naquele tempo, dizendo: «Amigo, esse Lula é mais do mesmo, a mesma baderna». E mais tarde: «Aqueles dois estão sempre a mancomunar! Eles dão cabo deste Brasil», profetizava a minha amiga, P., no seu bonito português abrasileirado! Ela tinha razão. Ou não? Isso só o brasileiro pode dizer.

O Brasil parecia que vendia saúde. Notícias recentes davam conta que perdoara a dívida a 19 países africanos. Etá, festa rija! Ninguém cuidou. Eu escrevi que o Brasil parecia que nadava em dinheiro, do bom.

Mas lá bem no fundo do caldeirão, o caldo enorme, tenebroso, fervia. A grande mole humana — as classes mais baixas, o operariado e o "lumpenproletariat", o motor, o verdadeiro combustível da revolução — saiu à rua. Estava encontrado e legitimado o júri, nesse supremo tribunal da nação: o povão, na sua autoridade absoluta. Aqueles que, ao contrário da classe média, pensativa e temerosa, não têm nada a perder; que não contabilizam as perdas e danos. Aqui vai a minha homenagem, portanto, a esses rapazes e raparigas, vindos dos confins da grande metrópole, dos arrabaldes, dos muros do desemprego, esses heróis anónimos que, de lenço no rosto, enfrentam, olhos nos olhos, as forças policiais, que dão o peito às balas de borracha, e que vão de encontro aos cassetetes da polícia, e do plexiglás dos escudos, nas lutas de rua. São eles a a guarda avançada da revolução.

Mohamed Bouazizi, o vendedor de fruta que se auto-imolou, na longínqua cidade de Bem Aros, Tunísia, despoletando a  gloriosa Primavera árabe, é o símbolo evidente do caráter popular do movimento. A Primavera Árabe alastra e transmite as suas ondas de choque até ao Brasil, arrastando consigo os pobres e os miseráveis, que transportam o facho da Liberdade e da Democracia.

Os analistas de esquerda, com o cérebro cheio de teorias burguesas, que hoje apressadamente constroem profundas reflexões, esqueceram-se de interpretar os dados críticos. Houve um sinal claro da Standard & Poor´s, que desceu o seu "Outlook" para a dívida brasileira, de estável para negativo, admitindo assim um possível corte no "rating" actual de BBB, dois níveis acima da categoria "junk", nas anteriores semanas à grande explosão de cólera.
Ninguém se apercebeu, nem ligaram para isso. Quem? Aqueles? Com aquela riqueza toda?
As agências de rating e as bolsas de valores, normalmente são os primeiros organismos a acusar a quebra de cotação das ações das grandes empresas multinacionais.

Riots Brasil
 
O mundo está cheio de estereótipos. Formam uma parede que não deixa ver a realidade. Constroem-se imagens e figuras sombrias, a preto e branco, como lanternas projetadas por detrás de um palco transparente; ou projetam tipos e padrões de vida, de sucesso, demasiado otimistas, género postal ilustrado para turista desfrutar. Os meios de difusão, na sua ânsia de tudo explicar, criam e forjam realidades fictícias, tipo telenovela, mundos imaginários em que só eles acreditam. Não olham para o âmago da sociedade. Basta-lhes os números e as projeções, sem alma nem conteúdo. Mas, latente, larvar, o descontentamento grassa na sociedade, à revelia das previsões e das ideias economicistas dos "gurus", que escrevem para o "Economist" e para o "Financial Times," e que os jornalistas sempre atualizados gostam de citar.

Enquanto os craques da economia e do jornalismo antecipam previsões de crescimento, e os "opinion  makers" montam os seus quadros simpáticos para inglês ver, conforme os candidatos e os partidos da sua simpatia, nos corredores dos hospitais, as crianças agonizam por falta de atendimento e os centros de atendimento do Estado abarrotam de gente que espera anos por uma consulta. As escolas rebentam pelas costuras, de mau ensino e de falta de condições e estruturas condignas. Os transportes públicos arrastam-se pelas ladeiras carregados do povão, que enceta a sua tragédia diária, em direção aos fábricas e às cozinhas dos restaurantes.

Para que conste, enumero e denuncio alguns dos estereótipos ultrajantes, que proliferam de boca em boca, pelas cidades, pelas ruas, becos e esquinas da Europa, quiçá do mundo:

O brasileiro saiu agora do torpor e da alienação, do Samba e do Futebol. Devido ao seu novo estatuto social, a novel classe média que antes era bruta, não tinha consciência política, e não sabia nada, agora abriu os olhos e já sabe reivindicar. O brasileiro não gosta de trabalhar, e está metido em bandos de criminalidade organizada.
Elas, as mulheres, vêm para a Europa para se prostituírem, e roubarem os maridos das pobres e sossegadas senhoras púdicas europeias, tementes a Deus.
O Brasil foi, nos últimos anos, um mundo de oportunidades. O "El Dorado", para as classes portuguesas empobrecidas e empurradas para o desemprego, enxotadas para os caminhos da emigração, devido às políticas de endividamento público, à falta de honestidade dos delfins da corte, e aos casos de excesso de protecionismo desse Estado que também aqui, em Portugal, quis construir uma sociedade baseada no investimento público, acarretando a partir daí os custos do fracasso.

O africano é corrupto e o seu grande sonho é vir para a Europa. Gosta de dar nas vistas, de cores berrantes e de mulheres europeias. O europeu vai para África para trabalhar, o africano vem para a Europa para usurpar o lugar de um nacional. Quando o africano investe na Europa, é fatal, é dinheiro sujo, tem a marca dos diamantes de sangue.
As mulheres africanas disputam o pódio da fêmea mais gorda e com maior massa adiposa junto à zona dos glúteos, são adeptas da bruxaria e provocadoras; os homens, querem é farra e cerveja, não gostam de trabalhar; os jovens desafiam e provocam a polícia, fazem a vida negra aos portugueses e não querem respeitar as leis do país de acolhimento. Os africanos são normalmente pouco inteligentes, tipo crianças crescidas, meio inimputáveis, mas exímios na dança e nos desportos  que requerem maiores atributos físicos. Têm propensão para a violência, não conseguem forjar acordos aceitáveis entre as tribos, nos seus próprios países.
Normalmente têm mais que uma mulher.

A velha fórmula albanesa do estado maximizado, orwelliano, ainda preenche o imaginário dos intelectuais da esquerda revisionista. Num país endividado até ao osso, o retrato do cidadão subsidiado pelos fundos públicos, dependente do juízo e do aval dos comissários políticos, guiado pelo Estado benemérito, super protetor e distribuidor da riqueza, de forma plana e igualitária, é o sonho acalentado pela esquerda do reviralho. As tentaculares empresas estatais e as híbridas entre este novo "Leviathan" e as sociedades particulares, dão avultadíssimos prejuízos, devido à má gestão, ao encobrimento e distribuição principesca de favores a este ou àquele interesse privado.
Malgrado o fracasso destas opções, os adeptos do Estado continuam a fazer novenas à Virgem Maria, para que este volte ao seu papel de controlador dos cidadãos.

Quanto ao indivíduo de etnia árabe, normalmente é maldoso e dissimulado. Elas usam a "burka" para esconder artefactos explosivos. Eles chicoteiam-nas diariamente. Faz-se confusão entre o que as mulheres querem ser e o que são obrigadas a ser, por tradições familiares. Para a maioria dos ocidentais, todas querem ser europeias e largar a religião muçulmana. O mundo, para estes fazedores de estereótipos, constitui-se em dois polos distintos, dois hemisférios: o norte e o sul.

Outro estereótipo comum consiste em acreditar no poder reforçado da polícia, quanto às suas prerrogativas de detenção e repressão. Acredita-se que o cidadão deve ser vigiado de perto, controlado à distância, para que não pense em veleidades, nem se estique para os lados. Crê-se, não no incremento da educação, mas no esvaziar contínuo das liberdades como meio de governar na paz e no sossego dos deuses.
Um polícia por cada habitante, e um exército de guarda-costas para cada membro do governo, faz a felicidade de um país deseducado, inculto e mal informado.

 Estes são alguns dos estereótipos mais vulgares do nosso tempo. A situação no Brasil e a Primavera Árabe despoletaram uma nova forma de encarar a imprensa e os "opinion makers".
Se de um lado o clássico jornal, a televisão e a rádio ainda cumprem o seu papel de divulgadores e de mensageiros, por outro, novas formas de comunicação pela internet tornam esses meios desatualizados e obsoletos. A massificação da comunicação abrange um leque mais vasto e é agora mais eficaz. Deixamos de estar à espera do noticiário das 20 h. para recebermos a notícia pelo telemóvel ou pelo portátil.

O mundo muda diariamente, e os novos saltos vão no sentido de uma maior participação dos pobres e dos deserdados, nos processos de decisão. As decisões tomam-se na praça pública, perante milhões, com cobertura ao vivo sob a vigilância e o escrutínio instantâneo das redes sociais.
É isso a verdadeira Democracia, com a participação e a exigência em direto das grandes massas populares, afinal os grandes obreiros das revoluções genuínas.

JLF

 

sábado, 15 de junho de 2013

JORNALISMO E FUNDAMENTALISMO


Conheço um jornalista que, aconselhado pela família, foi ao psiquiatra, porque pressentiam que algo não andava bem com a sua personalidade.
Logo na primeira consulta, o psicanalista fez-lhe o teste de Rorschach e começou por mostrar-lhe as manchas e os borrões de tinta simétricos. A resposta era invariavelmente a mesma, e resumia-se a isto:
Um assaltante com a mascarilha do Zorro, dois ladrões com os passa-montanhas enfiados na cabeça, dois bandidos a mexerem em dinheiro roubado, dois corruptos a guardarem dinheiro num cofre secreto, dois corruptos a fugirem de avião, dois executivos de Angola a querer investir dinheiro da corrupção numa empresa portuguesa, dois governantes de Angola a escaparem-se através da nuvem, e por aí fora.

Como livre-pensador que sou, não quero fazer a defesa do regime que comanda os destinos de Angola. Não estou sujeito a voto de lealdade a partido político algum, nem tão pouco sigo escrupulosamente nenhuma corrente ideológica. Leio e oiço a imprensa internacional, os adversários políticos e os inimigos do governo angolano. Não há como negar as evidências. Há demasiada corrupção em Angola.
Acredito que o vice-presidente seja sócio fundador de uma empresa que por sua vez é associada da Sonangol, a estatal petrolífera angolana, e que tira benefícios para si próprio dessa posição privilegiada. Também gostaria de saber por que motivo é que o filho do Presidente é quem gere o fundo soberano de Angola, avaliado em cerca de US$ 5 biliões de dólares. Tenho toda a curiosidade em saber se realmente ainda há presos políticos em Angola.

Todas essas questões me assaltam e povoam os meus anseios e as minhas angústias existencialistas. Tenho para mim, que Angola nunca será o modelo acabado de nação com uma economia exemplar, livre da corrupção, avançando em saltos qualitativos para o futuro, num crescimento harmonioso, e, como dizia a propaganda comunista de outros tempos, em direção a uma sociedade sem classes, em que o alvorecer de um novo dia, verá nascer o homem novo, liberto dos vícios e dos demónios do capitalismo. Pela tendência geral do mundo, que se encaminha para a generalização de políticas individualistas, mas acima de tudo pelo atraso inerente à condição secular do próprio continente.

Não me custa admitir todas estas situações, porque não vivo atascado nem aprisionado a um pensamento único e inelutável.
Mas sejamos francos e honestos; haverá neste planeta alguém que acredite neste postulado como objetivo possível e atingível num outro país qualquer do globo?

Custa-me bastante admitir, e é com mágoa profunda que noto, que quando se fala de Angola, entre certas franjas da elite intelectual portuguesa, que este é o ambiente generalizado nesse país. Que Angola é um antro de ladrões e bandidos, uma cleptocracia sem remédio, ancorada algures na costa ocidental de África, governada por um bando de corruptos, bandalhos e delapidadores dos bens comuns. O aspeto hilariante e o lado cretino desta situação é que comparam o melhor das instituições europeias com o pior de África. Julgamentos iguais partindo de premissas diferentes.

A atual esquerda portuguesa é quem fica em dívida — pela sua falta de visão estratégica, pelo seu deslocamento e afastamento da realidade do terreno, pelo idealismo bacoco, e pela reiterada atitude de arauto exclusivo da integridade e da honestidade — para com os esforços de Angola, para sair do estado miserável em que a descolonização deixou os nossos países.

A falta de respeito e o tratamento indigno que certos indivíduos dessa esquerda — que se escudam na carteira profissional de burocratas do jornalismo, e que resumem as suas vidas sedentárias na provocação e no desafio estéreis — dispensam a um líder africano septuagenário, eleito pela maioria do seu povo e presidente de um país amigo, é do mais abjeto e ultrajante que se possa imaginar. No tribunal desses fundamentalistas, oblitera-se um passado de exílio e de luta, e apaga-se, como qualquer historiador às ordens da ditadura soviética, todos os fatos históricos que fizeram com que esse país fosse o que hoje é, e tenha podido, esquecendo as vicissitudes da História, vir em ajuda dos velhos amigos do passado.

Para analisarmos globalmente o desempenho de um país e de um governo, não é possível fazê-lo sendo parciais, pegar nalguns casos de abuso de poder, avaliar negativamente por esse lado, e arrasar, unicamente pelos aspetos menos favoráveis dessa "performance." Não basta consultar à última hora o "Maka Angola" do Rafael Marques, que faz o seu trabalho genuíno de denúncia e oposição ao governo de Angola, e trazer para a ribalta da televisão e em bruto, sem confirmação, os fatos por ele constatados.
Da mesma forma que, não sou capaz de avaliar a presidência de Lula da Silva apenas pelas iniquidades dos subornos de alguns deputados do caso "mensalão." De igual modo, só a oposição avalia os anos da administração Sócrates, unicamente pelo pedido de ajuda ao FMI, para dar exemplos de como não é honesto seguirmos essa prática.

 Será que não há nada feito em Angola nestes anos de reconstrução nacional?

É o próprio Presidente José Eduardo dos Santos, quem enumera as realizações dos seus governos consecutivos, nestes últimos dez anos, ao longo da entrevista de Henrique Cymerman:
— Fizemos o reassentamento de quatro milhões de pessoas deslocadas, garantindo condições para a sua alimentação, cessando o apoio do Banco Alimentar Mundial.
Começou-se o processo de consolidação e reforço das instituições do Estado. O País estava destruído e exangue; as províncias estavam constituídas em ilhas, porque as vias rodoviárias e ferroviárias estavam quase todas destruídas, danificadas, ou minadas.
Angola era um dos países mais minados quando terminou a guerra, em 2002. Dizia-se que só era comparada ao Cambodja neste domínio, falava-se até em mais de seis milhões de minas espalhadas pelo território nacional e evidentemente que durante a guerra e até depois da guerra, tivemos várias vítimas de minas.
O orçamento do 1º programa de desminagem era da ordem dos 100 milhões de dólares, e assim sucessivamente, a partir de 2003/2004 fomos executando programas de desminagem.
Nesta década foram realizadas obras que permitiram reconstruir a rede fundamental de estradas e parte da rede secundária. A rede do caminho-de-ferro, com mais de dois mil quilómetros de extensão, as pontes, as centrais de produção de energia elétrica e água.
Lançamos um amplo programa de educação e formação de quadros, reabilitando escolas, institutos e reconstruindo estabelecimentos de ensino, em todos os níveis. O país cresceu imenso, do ponto de vista material e espiritual, e agora está preparado para encarar novos desafios.

A pergunta de Cymerman:
— Sr. Presidente, Angola passou por várias guerras civis, terríveis, muito duras,  imagino, qual é a forma de lidar com este desafio?
— É evidente que a reconciliação nacional pressupõe, em primeiro lugar, a perceção de que é preciso colocar os interesses gerais — o interesse da nação — acima de qualquer interesse particular, e guiarmo-nos pelos valores fundamentais da reconciliação, da paz e da procura da defesa da vida, como um bem supremo; por outro lado, foi necessário recorrer ao princípio da aplicação equilibrada do esforço de guerra com a negociação, a negociação política, mas uma negociação que tivesse em conta o interesse de todas as partes, e que procurasse uma solução de equilíbrio, e nalguns casos consensual para os problemas nacionais.
— Mas como é que se faz isso na prática?
— Na prática faz-se dialogando, compreendendo a vontade dos outros, e procurando levá-los para a razão, para soluções racionais, que acabem por trazer conforto a todos, e que acabem por criar um quadro em que todos possam encontrar a realização pessoal, a realização dos seus sonhos individuais, mas também dentro de um contexto mais geral, no contexto do sonho de todo o povo angolano.

A omissão sistemática de informação, a parcialidade da crítica na formulação de pareceres acerca das condições, dos elementos e dos fatores que empurram e condicionam os países para situações de dependência e de enquistamento social, são esquecidas, ou apresentadas como resultado da cupidez e da ambição desmedida dos governantes de Angola.
A "phobia" contra esse país chega a roçar o grotesco. Há jornalistas que perderam a capacidade de contar. Quarenta anos de uma cruel guerra acesa, do tempo pós-independência, onde os cães desapareceram das ruas para aparecer no prato dos habitantes, são somados como anos em que Angola deveria já ter sido catapultada para o desenvolvimento. Perderam a memória. Os dez anos de paz a partir dos quais, e em que verdadeiramente deveria começar a contagem são esquecidos e engolidos no vórtice da psicose. Estão possuídos de uma personalidade maníaca persecutória, e não conseguem ver nenhuma realização bem-intencionada e que esteja a dar frutos para o bem desse país.

" Sim, houve a guerra civil. Mas ela já terminou há algum tempo. Angola é um dos países com mais recursos em África. Teve um crescimento impressionante e dinheiro é coisa que não lhe falta. Apesar de produzir 1,7 milhões de barris de petróleo por dia, estava, em 2010, em 146º lugar, num total de 169 países, no relatório do PNUD. E, apesar deste enorme atraso, gasta mais dinheiro em formação militar do que no ensino básico".

Estas são palavras de um senhor jornalista português, na sua habitual crónica do Expresso. Não é difícil para uma criança desmontar esta cretinice pura. O que será algum tempo para este indivíduo? De 2002, quando terminou a guerra, a 2013, passaram 11 anos. Quer uma subida vertiginosa na classificação do PNUD? Quer que as instituições apareçam feitas e programadas como do dia para a noite, e a funcionar em pleno, como num passe de mágica? O crescimento impressionante que ele admite, significa que alguma coisa se fez. Tanto se fez que há 200 mil portugueses a trabalhar em Angola; o que significa que se fizeram fábricas, se abriram bancos e universidades, se criaram empregos e oportunidades para os compatriotas deste e de outros senhores poderem sobreviver. Por outro lado, não saberá que Angola vive exclusivamente da exportação do petróleo e que não tem indústria capaz e com recursos para esse desenvolvimento que gostaríamos de ver? Que não é do dia para a noite que se criam essas condições?

Quanto a compra de armas e às relações com Israel. O Presidente admite que tem adquirido meios militares a Israel e que tem havido formação de quadros da polícia e da contrainteligência por Israel.

 Haverá alguém tão ingénuo que possa pensar, que no continente africano, e na posição geográfica e geoestratégica em que Angola se encontra, é possível sobreviver, e em paz, sem um exército poderoso? Justamente com uma guerra aberta nas suas fronteiras, na República Democrática do Congo, contra os rebeldes do movimento M23?
Haverá tanta ingenuidade ou poderei chamar a mais pura cretinice?
No seu delírio argumentativo montaram o estereótipo e agora tratam de configurar uma filosofia que o suporte. A ortodoxia e o fundamentalismo crescem desbragadamente nas mentes autistas desses funcionários. Aqueles que nunca visitaram Angola, nem tão pouco conhecem as suas gentes são os que mantêm a opinião mais exacerbada. Quem os ouve deve pensar que os governantes andam pelas ruas a assaltar o cidadão comum. Se não houver quem contrarie esse discurso assassino, forma-se e cristaliza-se na opinião pública a ideia que José Eduardo dos Santos é o novo Xá da Pérsia, ou um sádico e mefistofélico Saddam Hussein de África.
Uma jornalista conhecida cita uma frase de Paul Theroux, escritor de novelas de viagens, desencantado com toda a África, numa breve passagem por Angola:
" Um país de imensa riqueza mineral e de petróleo, que é dirigido por um governo que é simplesmente predatório, tirânico, injusto, totalmente desinteressado no seu povo ... e indiferente à sua miséria e condições de vida desumanas".
Uma opinião genérica, a partir de uma visão igualmente genérica e romanceada, sem critérios rigorosos de comparação de dados, nem números, apenas ao sabor da angústia e do desencanto.

 Porque se pegarmos noutras opiniões, de pessoas que conhecem o país, ouviremos dizer que:
Embaixador António Monteiro:
— Angola tem um regime democrático com liberdade de expressão, basta ver os jornais angolanos, que muitas vezes atacam o regime e figuras do regime, e também há blogs, há a utilização das redes sociais, livremente, ao contrário de outros países em que isso não acontece. O esforço que Angola fez a seguir à guerra é notável, e muitas vezes quem não vai a Angola não está consciente disso; é um esforço que tem beneficiado Angola inteira. Era o país mais minado do mundo. Angola hoje tem o interior reconstruido, por vezes admiravelmente. Para além de todo esse esforço que foi feito e que também é visível na Baía de Luanda, o ex-libris hoje do esforço de renovação da cidade. Há problemas, é um país que terá que aprofundar a democracia e o estado de direito; mas é de facto notável, o que foi feito em Angola. Há uma classe média que emerge e que é palpável, e não é só em Luanda, é preciso ir também ao interior. O que é notável é o esforço que tem sido feito no campo da educação, em toda a Angola, desde os níveis da escolaridade primária até às universidades. Eu fui visitar a Universidade do Luena, que é uma universidade que tem dois anos, e tem 1800 alunos, para uma cidade em que nada existia há uns anos. Estão em construção inúmeras escolas e é extraordinário ver esse esforço que eles estão a desenvolver, e de que se sabe pouco cá fora.

Posto isto, concluo dizendo que Angola precisa de estabilidade. É fundamental que os órgãos do governo se submetam permanentemente ao debate no parlamento e nas comissões de inquérito, sem coação nem constrangimentos. Que esse debate seja público e transmitido em direto pelas televisões públicas e privadas para que o povo tenha acesso às deliberações e intenções do governo e do Partido no poder. É necessário incrementar e expandir as instituições de fiscalização e acompanhamento das obras e dos investimentos do Estado.

É imprescindível que os governantes se habituem a dialogar com a imprensa diariamente, que expliquem publicamente as suas ideias e como pensam fazer para melhorar as condições de vida das populações. Que os executivos ao serviço do Estado não se escudem no segredo dos gabinetes, e falem abertamente com a imprensa, e que esta seja livre para comentar, sem que se sinta ameaçada pelas forças policiais fiéis a este ou aquele partido.

Novas e renovadas formas de governação, mais limpas e transparentes, devem surgir em Angola e que a opinião pública se multiplique em dezenas de correntes, pensamentos, formas de arte e ideologias, por mais excêntricas que possamos julgar que sejam.

Sem prejuízo do muito que deram no passado, os lideres do presente devem limpar as suas memórias e situar-se no presente e nos desafios do futuro, de forma a fortalecer esse país chamado Angola, que todos gostaríamos de ver realmente como o exemplo acabado de sucesso e de prosperidade.

JLF

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

JAMIRO E O SEU GRANDE MUNDO


No dia em que completou sessenta anos, Jamiro acordou perturbado com os sonhos dessa noite; estava tudo gravado na sua cabeça, de uma clareza e de uma clarividência que o deixou pensativo e interrogativo, talvez também inquieto, admirado pela verdade da mensagem que alguém lhe tentava transmitir. Não acreditando em atividades extraterrenas, "de per si", tinha pelo menos a atitude conservadora de ponderar todos os aspetos à volta do assunto, o que lhe garantia à partida alguma vantagem sobre os não crentes. Também não era um esotérico, diga-se concretamente. Durante o resto do dia tentou formar um pensamento coerente, mas o fio do raciocínio levava-o para além da vida terrena, para o domínio dos mortos e dos espíritos, para as almas do outro mundo. As imagens a cores do sonho eram muito nítidas, e moviam-se frente a um cenário pastoso, tingido por uma mistura de vermelho sangue de boi e castanhos sólidos, cortados por pinceladas de amarelos aguados, verdes hortaliça e azuis brilhantes, num ambiente rural e campestre, entre velhos ciganos bebedores de aguardente, de bigodes desmesurados trajados de preto, vendedores de roupa interior feminina falsificada, matriarcas peludas de xaile, avental, peúgas de lá e chinelos, que esgravatavam e recolhiam o lixo, e raparigas desenvoltas vendedeiras de legumes e álcool, nos velhos armazéns repletos de barricas de vinho, a tresandarem a feijão e a suor. Prostitutas cansadas ofereciam o corpo aos rapazes desempregados. Homens casados abordavam sorrateiramente as mulheres da vida para sexo ilícito. Carroças puxadas por burros vagueavam pelas redondezas, recolhendo resíduos de metal, imundos colchões esventrados, e toda a qualidade de desperdícios das habitações.

 Jamiro permaneceu deitado, com os olhos espetados no teto, transido de frio, debaixo de uma pesada massa de cobertores, fascinado pela intensidade das imagens. Esfregou os olhos e coçou o queixo, onde uma barba de dois dias ameaçava torná-lo o ser anti—social, que já há algum tempo mostrava tendências em se tornar. O seu espírito voava para longe, mas estava preso pela letargia, não se conseguia mexer. Sentia que se degradava com a idade, tornara-se um homem sem moral nem fé, jogara as virtudes para a trituradora de papel. Odiva o Prozac, dizia que era homem em estado puro. Laboriosamente, e ao longo dos anos, conseguira esvaziar de dentro de si todo o objetivo maior da vida, qualquer sentido de grandiosidade. Bloqueara os acessos da consciência à experiência religiosa. Formara uma casca dura de resistência, não permitia a entrada a nada, nem a Deus. Homem ou lagarto? Às vezes julgava que a solução estava nos répteis que hibernavam durante alguns meses. Metamorfosear-se; mas em quê? As pálpebras colavam-se pelo efeito das longas horas de sono. Um fio de baba descia pegajoso dos cantos da boca. Do nariz escorria um líquido sulfuroso, que ele limpou às costas da mão. Levou um dedo ao ouvido direito. Um muco esverdeado e seco alojou-se na concavidade da unha.

 Acordara com uma portentosa ereção. Lembrou-se de uma das fases do sonho, em que apareciam algumas raparigas que se exercitavam na dança do varão, com peitos firmes e salientes, e teve algum asco e pena de si próprio. Gostava de mulheres jovens, saudáveis e bem constituídas; gabava-se que bastava uma ligeira brisa para levantá-lo. Velho libidinoso! Sacripanta! Estava feito; mas que raio de sonho é este, valha-me Deus! Logo hoje, o dia do meu aniversário…

 Não saia de casa há três dias e a comida começava a escassear no frigorífico. Restava-lhe algum atum barato, cebolas e ovos. Nada mais. Andava fascinado pela leitura, e achava-se com talento para escrever, mas quando pensava que conseguira formular algumas ideias e tentava montá-las num argumento coerente, as palavras atropelavam-se no cérebro, fugiam-lhe e escapavam-se rapidamente da memória, viscosas e escorregadias, como as serpentes dos pântanos. Por cada frase que conseguia construir, perdia meia hora à procura da próxima, da palavra certa e do tom mais adequado. Dava voltas à cabeça, desesperado, esfregava o cabelo com os dedos, aplicava ligeiras cabeçadas no tampo da mesa, esmurrava a parede em alturas de maior desinspiração, mergulhava a cabeça na água fria, tomava banhos gelados de imersão, mas nada! Já mudara de nome duas vezes. Fora o Jamiro para os textos políticos, e agora começara a assinar a reles ficção, que conseguia libertar da sua oficina mental, como Jamiroquá, (quá, quá, como diziam os que, pacientemente, liam aquelas patacoadas idiotas, metendo os polegares nas axilas, e imitando como as crianças, as asas de um pato dos lagos), tal qual a banda de música. Escrevia para si, para a inutilidade da sua gaveta, para o amontoado de papéis sem préstimo que acumulava pelos cantos da casa. Criticava tudo o que mexia; detestava a polícia, os advogados, os juízes, os tribunais, mas seguia a política, e adorava espetar alfinetadas nos políticos, pois aí havia bastante campo de manobra, era vasto o mar onde poderia navegar e cavalgar a onda dos insultos e da má-criação.

 Mas impunha-se interpretar o significado de todo esse delírio de imagens. Devido à intensidade e complexidade desses sonhos resolveu que teria que os dividir em duas partes, com um pequeno intervalo pelo meio, para que, quando cansado do esforço, pudesse dar algum alívio aos neurónios, e voltasse com maior capacidade de análise para a segunda parte dos fatos.

 Estava sentado numa roda giratória, num giroscópio que rodopiava a uma velocidade estonteante, centrifugado por poderosas forças magnéticas, que procuravam uma direção concreta e específica, apontando para todos os lados. A roda girava suspensa, descia da atmosfera e aos poucos parecia querer poisar entre os poucos carros que havia na estrada. Estava completamente desorientado e assustado. Era ao entardecer, e as luzes do giroscópio iluminavam o descampado, num espetáculo de clarões e buzinadelas que só ele percebia e ouvia. Apontou para um edifício antigo, e Jamiro reconheceu o local, ao mesmo tempo que caía mais profundamente no sono, e simultaneamente aumentava a sua ereção. Estava esmagado pelo estado onírico. As alucinações em tumulto apoderavam-se da mente de Jamiro. A testosterona acumulada misturava-se com as endorfinas segregadas durante o sono, produzindo doses maciças de atividade cerebral inconsciente.

 A roda parou finalmente, e ele reconheceu a sua casa. Desceu da engrenagem e entrou no velho edifício onde vivera largos anos. Uma tempestade de chuva e vento assolara a região na década anterior. À volta tudo se decompunha e se degradava; carcaças de automóveis e esqueletos de animais mortos jaziam pelas ruas da povoação. Porém, alguma réstia de esperança pairava no ar. As raparigas desenvoltas de outrora eram agora mulheres velhas e esfomeadas e ainda vendiam produtos alimentares nos passeios. Desceu as escadas do prédio e viu que a porta da sua velha casa estava aberta. Empurrou a porta e esta soltou-se de uma dobradiça, ficando com o fecho na mão. Entrou e olhou para dentro dos quartos. Um vazio profundo tomou conta de todo o seu ser. Uma sensação de "dejá vu" e uma impressão aguda de desperdício e abandono envolveram-no como mãos de aço. Sentou-se na madeira podre do soalho e esta acomodou-se ao seu peso; uma tremenda lassidão apoderou-se de si e deixou que o pó, o cheiro a mofo e a humidade lhe penetrassem nas narinas. Sorveu abundantemente o ar e desejou que os cheiros dos antigos cozinhados, de bolos no forno, e assados de peixe lhe inundassem as narinas, e se introduzissem nas veias e artérias.

 Era o seu mundo, o grande mundo de Jamiro. Afinal passara ali os anos de ouro da sua vida. Vira a sua filha crescer, tivera alguns tarecos, mas sentira-se confortável, pleno de utilidade e força. Sonhava às vezes que um dia tudo voltaria, que poderia reconstruir aquilo que o tempo destruíra, que a sua casa se iria recompor, que o sopro da vida penetraria novamente na habitação abandonada. Foi à antiga sala, e encontrou dois bocados rasgados da velha manta escocesa, verde a azul de franjas, junto à lareira, rota e quase desfeita pelos animais roedores, e pelos malfeitores que ali se abrigaram durante os anos das cheias, e que procuraram restos de comida para sobreviverem à adversidade; esticou-a no chão apodrecido e embrulhou-se nesses pedaços do passado. Uma lasca partida de um disco de vinil, e uma velha fotografia de um grupo de crianças no teatro da escola, estava escondido debaixo da manta. Não conseguiu perceber de quem se tratava, mas só podiam ser recordações da outra vida de Jamiro. Ecos de sons familiares, passos suaves e delicados de uma criança a correr pelos quartos e a solicitar afeto, ressoaram no cérebro do homem que regressava a casa. A carapaça que o tempo montou à sua volta fragmentava-se, desfazia-se, e ele sentiu-se desarmado e impotente perante a memória desses dias.

 Deitou-se e adormeceu. Sonhou que a nave que o trouxera o levava desta vez para uma viagem diferente, cada vez mais para o interior de si próprio, para o centro do córtex. Terminara a autopunição dos últimos anos. As peças soltas e desirmanadas do puzzle encaixavam agora num todo coerente. O crepúsculo descia sobre os arrabaldes da cidade. A abóbada por cima deles perdia os fulgurantes tons dourados, e lentamente, a fantástica fogueira do poente extinguia-se como uma devastadora queimada africana. Para lá das pontes, dos viadutos, das vias de comunicação e do majestoso rio, que, há séculos assente no seu trono, reinava e comandava o quotidiano, no formigueiro da grande urbe. Um vaga-lume acendeu uma tímida luz fluorescente e desapareceu instantaneamente. Um pássaro noturno piou, e o homem pressentiu que uma coruja rondava as imediações. Através das paredes ouviam-se os primeiros cantares das cigarras que viviam entre as ramagens das árvores do bosque vizinho. A primeira estrela veio poisar o seu brilho sobre os telhados vermelhos, e pouco depois já o colossal écran negro da noite estrelada se instalara como biliões de pixels soprados do interior de um gigantesco tubo catódico.

 Jamiro segurou a criança ao colo e ela puxou-lhe a face com os seus dedos pequeninos e morenos; ele sentiu o hálito fresco a leite e viu-lhe os dentes pequeninos, ainda mal plantados na boca; sorriu de contentamento. O cabelo encaracolado da filha confundiu-se com o seu, e o homem que retornava a casa sentiu-se finalmente confortado e em paz, e o seu coração estremeceu e crepitou doce e quente como um fogo brando, na ternura cálida da noite.

JLF