Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

JAMIRO E O SEU GRANDE MUNDO


No dia em que completou sessenta anos, Jamiro acordou perturbado com os sonhos dessa noite; estava tudo gravado na sua cabeça, de uma clareza e de uma clarividência que o deixou pensativo e interrogativo, talvez também inquieto, admirado pela verdade da mensagem que alguém lhe tentava transmitir. Não acreditando em atividades extraterrenas, "de per si", tinha pelo menos a atitude conservadora de ponderar todos os aspetos à volta do assunto, o que lhe garantia à partida alguma vantagem sobre os não crentes. Também não era um esotérico, diga-se concretamente. Durante o resto do dia tentou formar um pensamento coerente, mas o fio do raciocínio levava-o para além da vida terrena, para o domínio dos mortos e dos espíritos, para as almas do outro mundo. As imagens a cores do sonho eram muito nítidas, e moviam-se frente a um cenário pastoso, tingido por uma mistura de vermelho sangue de boi e castanhos sólidos, cortados por pinceladas de amarelos aguados, verdes hortaliça e azuis brilhantes, num ambiente rural e campestre, entre velhos ciganos bebedores de aguardente, de bigodes desmesurados trajados de preto, vendedores de roupa interior feminina falsificada, matriarcas peludas de xaile, avental, peúgas de lá e chinelos, que esgravatavam e recolhiam o lixo, e raparigas desenvoltas vendedeiras de legumes e álcool, nos velhos armazéns repletos de barricas de vinho, a tresandarem a feijão e a suor. Prostitutas cansadas ofereciam o corpo aos rapazes desempregados. Homens casados abordavam sorrateiramente as mulheres da vida para sexo ilícito. Carroças puxadas por burros vagueavam pelas redondezas, recolhendo resíduos de metal, imundos colchões esventrados, e toda a qualidade de desperdícios das habitações.

 Jamiro permaneceu deitado, com os olhos espetados no teto, transido de frio, debaixo de uma pesada massa de cobertores, fascinado pela intensidade das imagens. Esfregou os olhos e coçou o queixo, onde uma barba de dois dias ameaçava torná-lo o ser anti—social, que já há algum tempo mostrava tendências em se tornar. O seu espírito voava para longe, mas estava preso pela letargia, não se conseguia mexer. Sentia que se degradava com a idade, tornara-se um homem sem moral nem fé, jogara as virtudes para a trituradora de papel. Odiva o Prozac, dizia que era homem em estado puro. Laboriosamente, e ao longo dos anos, conseguira esvaziar de dentro de si todo o objetivo maior da vida, qualquer sentido de grandiosidade. Bloqueara os acessos da consciência à experiência religiosa. Formara uma casca dura de resistência, não permitia a entrada a nada, nem a Deus. Homem ou lagarto? Às vezes julgava que a solução estava nos répteis que hibernavam durante alguns meses. Metamorfosear-se; mas em quê? As pálpebras colavam-se pelo efeito das longas horas de sono. Um fio de baba descia pegajoso dos cantos da boca. Do nariz escorria um líquido sulfuroso, que ele limpou às costas da mão. Levou um dedo ao ouvido direito. Um muco esverdeado e seco alojou-se na concavidade da unha.

 Acordara com uma portentosa ereção. Lembrou-se de uma das fases do sonho, em que apareciam algumas raparigas que se exercitavam na dança do varão, com peitos firmes e salientes, e teve algum asco e pena de si próprio. Gostava de mulheres jovens, saudáveis e bem constituídas; gabava-se que bastava uma ligeira brisa para levantá-lo. Velho libidinoso! Sacripanta! Estava feito; mas que raio de sonho é este, valha-me Deus! Logo hoje, o dia do meu aniversário…

 Não saia de casa há três dias e a comida começava a escassear no frigorífico. Restava-lhe algum atum barato, cebolas e ovos. Nada mais. Andava fascinado pela leitura, e achava-se com talento para escrever, mas quando pensava que conseguira formular algumas ideias e tentava montá-las num argumento coerente, as palavras atropelavam-se no cérebro, fugiam-lhe e escapavam-se rapidamente da memória, viscosas e escorregadias, como as serpentes dos pântanos. Por cada frase que conseguia construir, perdia meia hora à procura da próxima, da palavra certa e do tom mais adequado. Dava voltas à cabeça, desesperado, esfregava o cabelo com os dedos, aplicava ligeiras cabeçadas no tampo da mesa, esmurrava a parede em alturas de maior desinspiração, mergulhava a cabeça na água fria, tomava banhos gelados de imersão, mas nada! Já mudara de nome duas vezes. Fora o Jamiro para os textos políticos, e agora começara a assinar a reles ficção, que conseguia libertar da sua oficina mental, como Jamiroquá, (quá, quá, como diziam os que, pacientemente, liam aquelas patacoadas idiotas, metendo os polegares nas axilas, e imitando como as crianças, as asas de um pato dos lagos), tal qual a banda de música. Escrevia para si, para a inutilidade da sua gaveta, para o amontoado de papéis sem préstimo que acumulava pelos cantos da casa. Criticava tudo o que mexia; detestava a polícia, os advogados, os juízes, os tribunais, mas seguia a política, e adorava espetar alfinetadas nos políticos, pois aí havia bastante campo de manobra, era vasto o mar onde poderia navegar e cavalgar a onda dos insultos e da má-criação.

 Mas impunha-se interpretar o significado de todo esse delírio de imagens. Devido à intensidade e complexidade desses sonhos resolveu que teria que os dividir em duas partes, com um pequeno intervalo pelo meio, para que, quando cansado do esforço, pudesse dar algum alívio aos neurónios, e voltasse com maior capacidade de análise para a segunda parte dos fatos.

 Estava sentado numa roda giratória, num giroscópio que rodopiava a uma velocidade estonteante, centrifugado por poderosas forças magnéticas, que procuravam uma direção concreta e específica, apontando para todos os lados. A roda girava suspensa, descia da atmosfera e aos poucos parecia querer poisar entre os poucos carros que havia na estrada. Estava completamente desorientado e assustado. Era ao entardecer, e as luzes do giroscópio iluminavam o descampado, num espetáculo de clarões e buzinadelas que só ele percebia e ouvia. Apontou para um edifício antigo, e Jamiro reconheceu o local, ao mesmo tempo que caía mais profundamente no sono, e simultaneamente aumentava a sua ereção. Estava esmagado pelo estado onírico. As alucinações em tumulto apoderavam-se da mente de Jamiro. A testosterona acumulada misturava-se com as endorfinas segregadas durante o sono, produzindo doses maciças de atividade cerebral inconsciente.

 A roda parou finalmente, e ele reconheceu a sua casa. Desceu da engrenagem e entrou no velho edifício onde vivera largos anos. Uma tempestade de chuva e vento assolara a região na década anterior. À volta tudo se decompunha e se degradava; carcaças de automóveis e esqueletos de animais mortos jaziam pelas ruas da povoação. Porém, alguma réstia de esperança pairava no ar. As raparigas desenvoltas de outrora eram agora mulheres velhas e esfomeadas e ainda vendiam produtos alimentares nos passeios. Desceu as escadas do prédio e viu que a porta da sua velha casa estava aberta. Empurrou a porta e esta soltou-se de uma dobradiça, ficando com o fecho na mão. Entrou e olhou para dentro dos quartos. Um vazio profundo tomou conta de todo o seu ser. Uma sensação de "dejá vu" e uma impressão aguda de desperdício e abandono envolveram-no como mãos de aço. Sentou-se na madeira podre do soalho e esta acomodou-se ao seu peso; uma tremenda lassidão apoderou-se de si e deixou que o pó, o cheiro a mofo e a humidade lhe penetrassem nas narinas. Sorveu abundantemente o ar e desejou que os cheiros dos antigos cozinhados, de bolos no forno, e assados de peixe lhe inundassem as narinas, e se introduzissem nas veias e artérias.

 Era o seu mundo, o grande mundo de Jamiro. Afinal passara ali os anos de ouro da sua vida. Vira a sua filha crescer, tivera alguns tarecos, mas sentira-se confortável, pleno de utilidade e força. Sonhava às vezes que um dia tudo voltaria, que poderia reconstruir aquilo que o tempo destruíra, que a sua casa se iria recompor, que o sopro da vida penetraria novamente na habitação abandonada. Foi à antiga sala, e encontrou dois bocados rasgados da velha manta escocesa, verde a azul de franjas, junto à lareira, rota e quase desfeita pelos animais roedores, e pelos malfeitores que ali se abrigaram durante os anos das cheias, e que procuraram restos de comida para sobreviverem à adversidade; esticou-a no chão apodrecido e embrulhou-se nesses pedaços do passado. Uma lasca partida de um disco de vinil, e uma velha fotografia de um grupo de crianças no teatro da escola, estava escondido debaixo da manta. Não conseguiu perceber de quem se tratava, mas só podiam ser recordações da outra vida de Jamiro. Ecos de sons familiares, passos suaves e delicados de uma criança a correr pelos quartos e a solicitar afeto, ressoaram no cérebro do homem que regressava a casa. A carapaça que o tempo montou à sua volta fragmentava-se, desfazia-se, e ele sentiu-se desarmado e impotente perante a memória desses dias.

 Deitou-se e adormeceu. Sonhou que a nave que o trouxera o levava desta vez para uma viagem diferente, cada vez mais para o interior de si próprio, para o centro do córtex. Terminara a autopunição dos últimos anos. As peças soltas e desirmanadas do puzzle encaixavam agora num todo coerente. O crepúsculo descia sobre os arrabaldes da cidade. A abóbada por cima deles perdia os fulgurantes tons dourados, e lentamente, a fantástica fogueira do poente extinguia-se como uma devastadora queimada africana. Para lá das pontes, dos viadutos, das vias de comunicação e do majestoso rio, que, há séculos assente no seu trono, reinava e comandava o quotidiano, no formigueiro da grande urbe. Um vaga-lume acendeu uma tímida luz fluorescente e desapareceu instantaneamente. Um pássaro noturno piou, e o homem pressentiu que uma coruja rondava as imediações. Através das paredes ouviam-se os primeiros cantares das cigarras que viviam entre as ramagens das árvores do bosque vizinho. A primeira estrela veio poisar o seu brilho sobre os telhados vermelhos, e pouco depois já o colossal écran negro da noite estrelada se instalara como biliões de pixels soprados do interior de um gigantesco tubo catódico.

 Jamiro segurou a criança ao colo e ela puxou-lhe a face com os seus dedos pequeninos e morenos; ele sentiu o hálito fresco a leite e viu-lhe os dentes pequeninos, ainda mal plantados na boca; sorriu de contentamento. O cabelo encaracolado da filha confundiu-se com o seu, e o homem que retornava a casa sentiu-se finalmente confortado e em paz, e o seu coração estremeceu e crepitou doce e quente como um fogo brando, na ternura cálida da noite.

JLF