O assunto não merece mais que duas ou três linhas e talvez
interesse apenas àqueles que, tal como eu, gostam do pontapé na bola, vibram
com a “affición” e não perdem uma boa alfinetada, nem uma boa polémica acerca
deste ou daquele tema do dia.
Mas pode não ser assim tão despiciendo e talvez afinal valha
a pena tecer algumas observações.
Admiro José Guilherme Aguiar, não só pelos extensos
conhecimentos que tem sobre o futebol - dentro e fora do terreno de jogo, sobre
a arbitragem, acerca dos bastidores do jornalismo e do direito desportivo e do
mundo mais escorregadio e viscoso que é o autoritário e burocrático universo da
FIFA - mas também pelo indefetível amor ao seu clube, o Futebol Clube do Porto.
Tudo isso abona a seu favor e é com os ouvidos bem abertos que me apresto a ouvi-lo
quando fala, nas inúmeras mesas redondas e conferências em que participa.
Mas desculpe-me que lhe diga, respeitável amigo, parece-me
que esse amor já lhe tolda a visão e lhe torce a perspetiva, inibindo-o de
discernir de forma escorreita e isenta.
Vem isto a propósito, de algumas considerações que proferiu
sobre Eusébio, no último programa da televisão, “O Dia Seguinte.” Disse então
que condena Eusébio porque, num dos muitos programas que a TV portuguesa fez,
dedicando-lhe bastantes horas em entrevistas e reportagens - assaz carinhosas
por sinal - por ocasião do seu 70º aniversário, Eusébio teria confidenciado
para todo o país, que num dos últimos jogos da sua carreira, quando
representava outras cores, havia-se recusado a marcar golos contra o Benfica, o
seu clube do coração e teria mesmo enfrentado o treinador, que teimava em
fazê-lo entrar para dentro do campo. Andou pelo campo, talvez meia hora ou
menos e fingiu que jogava, completamente desinteressado do jogo.
Eusébio chegou ao Beira-Mar para encerrar a carreira,
cansado, espremido e massacrado até ao osso, pois nessa altura só Eusébio
valorizava o clube e o país, colocando este mesmo país no mapa do mundo.
Gostava que as gerações mais novas, que hoje idolatram Cristiano
Ronaldo, olhassem para a espetacular carreira de Eusébio e para o seu
infindável palmarés desportivo, ao serviço do Benfica e da Seleção Nacional.
Dizia Eusébio, há tempos, que quando suava de dores e tinha que entrar em campo
infiltrado, restava-lhe apenas morder a toalha, que ainda hoje é o seu fetiche
e amuleto da sorte, e fosse o que Deus quisesse. Lembro-lhe que as graves
lesões que foi colecionando e as sete (leiam bem, sete) operações aos joelhos,
transformaram um desses mesmos joelhos numa invulgar e rara massa disforme que
ainda hoje o impedem de andar normalmente como qualquer um de nós é capaz. Tudo
de uma forma desinteressada, sem olhar a vantagens, nem contratos, apenas para
servir Portugal e o seu clube de sempre, o Benfica.
Comparar o choro de Rui Costa quando, pela Fiorentina,
marcou um golo ao Benfica e chorou, chamar a isso absoluto desportivismo e por
outro lado, apelidar de anti-ética a “gaffe” de Eusébio, dizendo que como
desportista era sua obrigação marcar, ou por outro lado, não se gabar de o ter
feito, é pura redundância e enferma de uma ótica doentia, desculpada apenas
pela sua cegueira clubista. Equiparar a habilidade ronceira ao fulgor do génio
em movimento, do instinto puro de um dos mais perfeitos matadores que a
história do futebol já produziu, é, do meu ponto de vista, ter vistas curtas e
apenas alcançar a estreita orla do mediano e do medíocre.
Se toda esta disponibilidade e sofrimento não lhe dão o
direto de emitir humildemente qualquer “blague” mais ou menos espirituosa, sem
que os arautos das virtudes e dos bons costumes se apressem a escalpelizar e
criticar, então muito mal estamos, que não sabemos reconhecer nem diferenciar o
simples e passageiro ídolo, do mito, da verdadeira matéria do mito, de que são
feitos os nossos sonhos. Falar de Eusébio é entrar no domínio dos símbolos, do
eterno e do incomensurável e dos mitos apenas nos recordamos a sua força e a
sua destreza com o arco, no salto ou no pentatlo, como os deuses e os atletas da
antiga Atenas.
Portanto caro amigo, Guilherme Aguiar, não lance sombras
onde apenas reside a luz dos grandes astros iluminados e procure que essa luz
irradie outros, com o seu exemplo de abnegação e patriotismo, coisa que
bastante falta faz hoje em dia.
J.L.F.