Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Uma História Comum (1)

                                                                                                                                                                                                                                                           
Nota do autor: Esta é uma história de ficção. Nada disto aconteceu. É tudo fruto da minha imaginação. A partir de um ponto qualquer da História Universal e do percurso do Homem, desenvolvi algumas ideias que tinha latentes e construí esta peça sobre a violência e a crueldade medievais.
Nem tudo o que os relatos oficiais nos contam é verdade. Também não sabemos como realmente as coisas aconteceram. Então, podemos extrapolar, ficcionar, imaginar um acontecimento isolado e criar algo sob uma perspetiva diferente, ou simplesmente considerá-lo plausível, mais próximo da realidade.
Quero deixar um aviso a quem se sentir tentado a ler. Há relatos nestas páginas que poderão afetar as consciências mais sensíveis. Se esse é o seu caso, então não leia, p.f. Bem haja J..L.F.


                                                 A Chegada


Uma bala da escopeta vazou-lhe os intestinos e o indígena logo ali ficou caído na areia da praia, quando olhava atónito para a pequena embarcação carregada de homens brancos armados com aqueles utensílios compridos e esquisitos, que largavam sobre eles pedaços de metal quente e penetrante como grossas agulhas, idênticas às daqueles arbustos com que eles lutavam diariamente quando entravam selva adentro, à caça de animais e plantas comestíveis.
O segundo indígena quis lançar a comprida lança aguçada, de metal pontiagudo, contra os soldados de rostos ameaçadores, hirsutos, com roupas de couro trabalhado, armaduras e elmos de ferro, mas também ele ficou caído, atingido pela segunda descarga de chumbo grosso.
Descansaram os marinheiros, abrindo alas para o frade jesuíta, que poisou as suas benditas e virginais sandálias pela primeira vez nas terras inóspitas de África, onde o bruto gentio, arredio da mão divina, estava ali para receber a palavra do Senhor de modo a largar a condição animal e tornar-se, durante os próximos séculos, filho de Cristo e entregue para sempre nas mãos de Deus.
Chegados à praia, logo ali foi aberta cova funda onde o frade espetou uma bela cruz de dois metros de altura, esculpida em madeira nobre de carvalho e ornamentada em baixo relevo pela história e pelos feitos cristãos e generosos da Ordem de Jesus, em terras distantes e hostis, do Brasil às Índias misteriosas. Por Deus, pelo Papa e pelo Reino, podia ler-se em cima de tudo. Ao lado, dois metros à direita, o sólido marco oficial da nação, ostentando o brasão e as armas da Casa Real. Ajoelharam-se os quinze homens e foi rezada uma pequena oração, agradecendo aos anjos e à Virgem, a graça da descoberta.

Havia dois mortos no areal. O grupo desceu das embarcações e atrás da primeira barca amarou mais uma e de seguida mais duas, três, depois eram cinco, sete, e após algumas horas estava a linda enseada pejada de homens sujos e esfomeados, de comportamento agressivo e brutal e de chatas escuras de nogueira. No mar, algumas centenas de metros adiante, fundeavam três caravelas capitaneadas por D. Rodrigo González Navarro, almirante de Sua Santidade o Papa Benedito Sétimo, ao serviço de Sua Majestade, a Rainha María Stewart, a Almejada, inglesa do seu primeiro marido, esposa do Conde de Salamanca y Vigo, príncipe consorte de Sua Alteza Real.

Os dois moribundos revolviam-se com dores, golfavam ampolas de sangue quente, mas os marinheiros olhavam para os fuzis, carregavam-nos de pólvora e discutiam a localização daquelas terras, à espera da embarcação principal, que traria o comandante, D. Rodrigo González, corsário de todos os mares e oceanos, comandante de naus e caravelas, à descoberta de novos e admiráveis mundos.

Finalmente desceu D. Rodrigo Navarro, de rosto preocupado mas feliz, por detrás de uma barba de semanas, magro, com a comprida espada balançando à cintura, a ponta da bainha tocando o botim ou roçando a terra desconhecida dos negros, seguido de perto pelo frade, que, de olhos no chão, lhe segredava conselhos e, de mãos unidas e dedos apontando para os céus, rezava e acariciava o terço entrelaçado entre as falanges. Mas finalmente todos brindaram com o vinho escuro tirado dos bornais e dos cântaros, todos riram alto e um ar de felicidade terrena pairou sobre o entardecer flamejante dos céus de África.
Prontamente foi enviado um grupo de reconhecimento para o interior da floresta, ao mesmo tempo que um outro abria uma clareira, a golpes de espada e machados, depositava equipamentos e víveres, acendia fogueiras e montava a tenda principal que albergaria D. Rodrigo Navarro, o destemido capitão.
Os dois curiosos gentios jaziam na praia, os corpos retorcidos. Morreram debaixo de estertores e gemidos medonhos. Foram afastados e empurrados para longe do caminho, para lá da baía, para debaixo dos juncos. Mas quando a noite se fez sobre a terra e os homens das caravelas já cantavam bêbedos junto dos fogos crepitantes, cinco guerreiros rastejavam assustados, por entre as palmeiras, no meio das raízes húmidas e lentamente recolhiam os corpos ensanguentados dos companheiros, com as vísceras e a cara desfeita pelos tiros de curta distância. Levaram-nos para o fundo da floresta, andando toda a noite. Armados de arcos, lanças e pequenos punhais de ferro atados à cintura, penduraram nas costas os corpos dos compatriotas inertes e atravessaram a mata, rumo aos longínquos sinais de fumo e à povoação de cabanas construídas de palha, troncos de árvores e barro amassado. De madrugada, aos primeiros raios de sol, entregaram os corpos às famílias e foram direitos à casa do chefe da aldeia, que já estava a pé tendo ouvido a história dos cinco homens. O pai, o ancião da tribo, ouviu também e lembrou-lhes a premonição que anunciava para breve o fim dos dias de paz, que haveria muitas mortes daí para o futuro e estava agora a começar para eles a era dos tormentos e dos padecimentos atrozes. Nada mais disse e cansado, curvado sobre o cajado, entrou para a pequena cabana de palha seca, a ruminar os seus pensamentos e a cogitar novas profecias.
Daquele momento em diante começariam os rituais fúnebres tradicionais e depois dar-se-iam os funerais. No silêncio da alvorada, eclodiram os choros, as preces ao Criador e soaram os primeiros tambores, como uma trovoada que antecedesse o mau tempo - o pior dos vendavais, a mais terrífica das tempestades! Durante três dias e três noites os batuques não pararam. Em pouco tempo, os povos bakongos, souberam que algo de muito grave se estava a passar. Muitos quilómetros para lá da povoação, os autóctones abriram as bocas de espanto pelo que ouviam. Sabiam de histórias e lendas de homens estranhos vindos do mar, em navios poderosos, que lançavam fogo e destruição e capturavam os seus irmãos, mas só agora sentiam o perigo tão perto.
Para chegar àquele lugar do mundo, bastava aos navegadores descer para Sul, vindos dos portos de França, Espanha e Portugal, em direção às Canárias, com o vento de feição, empurrando as velas e navegar, ladeando a costa, até ao Golfo da Guiné, passando pelo Gabão, Congo, Angola e dando de caras com a Namíbia e o Botswana e depois alcançar o Cabo. Eram reinos desconhecidos, terras sem nome e escassamente habitadas, onde a malária, a febre tifoide e outras epidemias dizimavam povoados inteiros e os navegadores, que se aventuravam por aquelas paragens. Muitos meses se passavam até que encontrassem vivalma ou portos de abrigo, onde pudessem reabastecer-se de géneros. Os últimos postos avançados de comércio que encontraram, situavam-se nas Gran Canárias, onde havia um aquartelamento de europeus, traficantes de escravos e vendedores de víveres para os indígenas, com um pequeno embarcadouro, e aí puderam fazer algumas trocas. De momento estavam na imensa bacia entre o Gabão, os Reinos do Congo e o norte de Angola onde desfrutavam da bonomia do mar e do calor tropical.
Por esses dias, a acalmia e o sossego reinavam naquelas águas. O tempo era bom, pairava no ar uma tepidez e uma quietude tão intensa, palpável, que quase se podia tocar ou ouvir, como musica, por vezes estranha, singular. Aos poucos, metodicamente, o sol quebrava e desfazia as partículas de orvalho acumulado durante a noite. A serenidade era absoluta. Mas anteriormente, durante semanas a fio, houve acontecimentos que deixaram os nativos estupefactos. Primeiro, foram duas canoas que de repente se viraram e por mais força que fizessem, por mais que homens e crianças ajudassem, nada as fazia voltar ao normal. Não tinham furos nem rombos, o casco estava completamente fechado, mas elas, contrariando as leis da física, mantinham-se com a garganta virada para baixo, como se quisessem engolir toda aquela água. Doutra vez, duas palmeiras sólidas, saudáveis e robustas caíram de repente prostrando-se no chão, como que a chamar a atenção daqueles amigos, que se protegiam sob a sua sombra, para algo que estava prestes a acontecer. As mulheres queixaram-se que as panelas se recusavam a receber alimentos, jogando tudo para fora, virando-se quando estavam ao lume; houve fogos e lumes que inusitadamente se apagaram. Os homens andavam assustados e intrigados. As mulheres já não sabiam como ferver os caldos preparar a mandioca. E os animais da aldeia eram inexplicavelmente encontrados a dormir, atacados de uma sonolência profunda, num estado cataléptico, as galinhas e os porcos encostavam-se em qualquer lugar e durante horas ficavam imóveis, em letargia total como nunca ninguém viu.
Mas os dias corriam tranquilos, o quotidiano e os hábitos de décadas mantinha-se imutáveis passando de pais para filhos. Os homens da terra que se dedicavam às lides da pesca, desciam até à praia, mal o dia clareava, empurravam as canoas de encontro às ondas, acompanhados dos filhos, vagueavam pela orla e ensinavam-lhes as artes do mar, lançando as redes e anzóis, com alegria e despreocupação, entre gritos de incentivo e gargalhadas de satisfação.
Mas há dois dias que as canoas haviam desaparecido e com elas todos os vestígios dos utensílios da pesca. Desapareceram as pequenas velas remendadas e comidas pelo tempo, que por vezes apetrechavam as compridas pirogas, os remos, as redes e qualquer sinal da sua presença. Quando as caravelas foram avistadas ao longe, os habitantes da praia, amedrontados, recolheram para o interior da floresta, para as suas casas e esconderijos, onde ficaram à espera que os estranhos partissem.
De dentro das naus, muitos pares de olhos espreitavam pelas escotilhas, tentando perceber onde estavam. Na caravela principal, a mais imponente, com o nome da rainha bordado a ouro na proa, dois canhões de ferro e bronze fundido, carregados de pólvora, viravam as bocas, nas amuradas, para terra e para o mar, ameaçando destruir qualquer inimigo que lhe ousasse enfrentar.
Descendo do convés por uma estreita escada em caracol, chegava-se ao porão, e um cheiro fétido atacava os sentidos. Vários homens suados e esfarrapados, na maioria apenas com um pano a cobrir as partes, conversavam descontraídos, guardados por um soldado de olheiras profundas, com o fuzil apontado, a desfalecer de cansaço e incomodado pelo calor, pelos mosquitos e pela humidade do ar. Dariam um bom lucro para D. Rodrigo, o corsário sem medo. Alguns bebiam de um sujo alguidar de latão, donde retiravam um líquido viscoso, em que boiavam restos de peixe e batatas, com a ajuda de uma concha de cabo comprido e enchiam uma pequena cabaça que levavam para o assento perto dos remos. Eram escravos, homens prontos para serem vendidos e mudados de dono, no primeiro porto, onde aparecesse algum traficante negreiro. Entre eles estavam dez robustos índios paraguaios capturados noutro porto, por outro bando de aventureiros, e traficados nas terras que os portugueses chamavam de Vera Cruz, no interior do Mato Grosso, na fronteira com o Paraguai, e aptos para serem negociados também.
Dormiram repousados e já a manha ia alta, estando os homens a aquecer o café, a comer broa e papas de milho, a arrumar as camas improvisadas e à espera de ordens de D. Rodrigo González, quando este saiu da tenda, os suspensórios caídos sobre as ancas, descalço, imundo, babando e exalando a vómito, vestindo ceroulas amarelas bastante usadas e gastas. Esbugalhado de tanta luz que lhe feria a vista, mas excitado pelo dia que o esperava depois de muito tempo de inatividade, ia finalmente ter ação. Ouviu-se a sua voz que gritava para os marinheiros:                                                                                      
- Los negros! Los negros! Donde están los negros? Vamo-nos a ellos! Avanzar, avanzar!
Com a biqueira da bota, D. Rodrigo González pontapeou uma pequena fogueira que ardia à porta da sua tenda de campanha; empurrou a ordenança que fazia guarda à entrada e virou-se decidido para dentro, onde foi vestir o gibão da armada, a calça de cabedal castanho cozida à mão, os enfeites de metal e o capacete de pontas. Com a pistola de cano duplo dentro de um colete apertado, deixando ver o cabo de madrepérola e o percurtor curvo de ferro, retirou a espada da bainha, limpou à calça restos de sangue seco que ainda se agarravam à lamina, encaixou-a dentro da fina proteção de prata, com desenhos e dedicatórias da noiva prometida e voltou a prendê-la ao cinto. Tomou o café rapidamente, bebeu um gole de aguardente e, balançando o sabre junto à coxa, o Almirante saiu em direção aos homens que já se postavam de pé, prontos para a caminhada. Sabiam que o dia seria longo.
Frei Bartolomeu Bonifácio Benevides, como era o seu nome verdadeiro nos registos oficiais do governo civil de Salamanca, servo de Deus e da Ordem de Jesus, manteve-se no acampamento, sempre acompanhado por dois marinheiros armados, tendo algumas horas depois regressado ao convés da caravela para descansar e pôr as suas preces em dia. Almoçou tranquilamente um ensopado de carneiro, regou-o com o vinho que trouxera da abadia e entre salmos e escrituras passou o resto do dia concentrado nas leituras do livro sagrado.
Nesse dia os soldados palmilharam vinte quilómetros mata adentro, de espingardas aperradas, prontas para o disparo, mas não viram ninguém. Ao longo da caminhada, dezenas de vezes foram observados e seguidos por indígenas que caçavam e colhiam ervas para a alimentação. Mataram dois veados, que esfolaram e cozinharam no acampamento, no regresso e ao fim do dia comeram como há muito não faziam. Revezaram os guardas das caravelas, e estes também satisfizeram fartamente os estômagos ansiosos. Trouxeram mais vinho, aguardente e whisky das barricas da nau, beberam o resto da noite até caírem e cantaram satisfeitos abençoados por Frei Benevides, que, ao entardecer, voltou ao acampamento para confessar o comandante, aconselhá-lo, lembrar-lhe das promessas de ofertas em dinheiro à Ordem, da obediência ao Papa e à Virgem e para saber as novidades desse primeiro dia em terras desconhecidas.
Nos porões das naus, os escravos esquecidos ansiavam por água fresca e comida quente. Mas a noite chegou e apenas viram ao longe, pelas escotilhas, as fogueiras na praia e ouviram os cânticos ébrios dos marinheiros. O que sentiram foi o cheiro ténue, trazido pela brisa que soprou na direcção dos navios; o cheiro de carne suculenta assada nos espetos e o cheiro a álcool e pimenta, malagueta e rum, o que os fez adormecer e sonhar com um mundo diferente, mais justo, um mundo de um verdadeiro Deus, que talvez fosse melhor se de carne e osso se tratasse e se tivesse vida terrena, que andasse pelo mundo, entre fracos e miseráveis, não em espírito, ausente, e pudesse sentir como homem, na pele e no sangue, a dor profunda, lancinante, do punhal traiçoeiro por Ele cravado da escravidão.
De noite, na intimidade do quarto, ou na tenda de campanha, à luz tremeluzente de lamparinas, D. Rodrigo pensava no rumo que seguiam as naus à sua responsabilidade e chamava o seu oficial e adjunto de confiança, D. Mateus, da Real Escola do Mar de Córdova, para fazerem o balanço da aventura e traçaram novos planos para os dias que tinham pela frente. D. Rodrigo afastava da mesa os mapas, sextantes, quadrantes, bussolas, compassos, transferidores, lápis, aparos, tinteiros e cartas de navegação e ambos estudavam atentamente duas velhas cartas gordurosas e muito rabiscadas com hieróglifos chineses da dinastia Ming e do navegador e explorador Zheng He, que, dizia-se, em 1400 dera duas voltas ao mundo e deixara extenso material para consulta sobre luas e marés, constelações, nebulosas, lugares e portos de abrigo, enseadas, baías, arquipélagos, ilhas e presumíveis continentes; alguns relatos de mercadores e viajantes judeus, marroquinos, venezianos, genoveses, árabes e mongóis que percorreram a costa de África e traficaram escravos, ouro, prata, álcool e mercadorias, também eram passados em revista pelos dois oficiais.
(continua)


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