Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sábado, 24 de dezembro de 2011

A Barcaça do Tempo


As motos do princípio do século e as montanhas frias da cordilheira dos Himalaias, dos Andes, ou dos Pirinéus. A barcaça com rombos no casco e os capacetes fora de uso; as malas largadas à pressa. O tempo, a ferrugem e o caruncho tomaram conta de tudo e vão destruindo o belo cenário no nevoeiro, da barcaça sem rumo. Já não se vê nenhum rosto humano. Implacável, o sentido da inutilidade das coisas sentenciou-a ao abandono. Agora, perdida no tempo, vagueia ao sabor das ondas e das correntes e o seu destino ficará traçado ao chocar contra os rochedos ou engolida pelas vagas e pelas marés.

Nas grandes perseguições, em quarenta e cinco, os resistentes escondiam-se dos exércitos fascistas e organizavam fugas para as florestas, montes e vales. Agradeciam a sua ajuda e depositavam nela a máxima confiança.

No seu bojo viveram-se histórias e dramas de outras épocas. Gente das montanhas, bucaneiros, andarilhos dos caminhos e dos trilhos esquecidos, proscritos, assaltantes de carroças carregadas de haveres, gente sem lei, desciam e usavam-na no seu quotidiano de pobreza, no comércio e no contrabando de tabaco, rum e aguardente. Novelos de corda, arame, anzóis, artefactos de pesca, peles de castores, casacos de raposa, dentes de ursos para o mau-olhado, carne seca de javali, salmão fumado dos rios e animais de criação, porcos e galináceos amarrados ao colo de gordas mulheres, com a pele escura das mexicanas.

Um dia, numa rixa por dívidas de jogo, dois filibusteiros trocaram insultos e socos, e alguém disparou um fuzil de pederneira, enquanto a pequena embarcação se inclinava perigosamente e ameaçava ir ao fundo. Ficou o morto, encharcado num tapete rubro de sangue, no convés, que o assassino se encarregou de atirá-lo ao mar. Abandonada e amaldiçoada, diziam que carregava maus presságios. Vagueia agora sozinha, qual jangada de pedra à espera da sentença final. Entre fantasmas do passado, entre restos e dejectos, debaixo de chuvas torrenciais e do frio gelado, enfrenta o seu destino solitário, no meio da bruma, e dos pássaros que soltam gargalhadas pueris, lhe grasnam nos ouvidos e poisam as unhas sobre o seu desengonçado esqueleto.

Já não se vê nenhum rosto humano. Nos dias de sol e intensa luz tropical ganha novo alento, renasce por breves instantes, mas sabe que será fugaz a sua alegria. O rombo no casco é cada vez maior. A madeira descola-se e desfaz-se, e o alcatrão já não sustém a força da água.

Perdeu-se na memória dos vivos. Ninguém lhe fará história. Já não há contadores e as lendas tinham a sua linguagem própria. Hoje, o seu passado heróico já nada diz.

Agora, resto apenas eu, que naveguei com ela por esses mundos distantes, do Báltico à Patagónia e lhe conheci as lendas, sentei-me e ouvi as velhas e tristes canções dos companheiros foragidos, de tristes destinos, e as suas vidas passadas, mas também eu já me vergo ao peso dos meus espectros.

J.L.F.

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