Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A vagina de Nafissatou Diallo

                                                                                                              


Dominique Strauss-Kahn é um homem de sorte. O procurador-geral de Nova York, Cyrus Vince, concluiu que os factos em seu poder e o relato de Nafissatou Diallo, não constituíam provas suficientemente sólidas para sustentar uma acusação contra o ex – director do FMI. Baseou-se nas incongruências e nas contradições de “três versões  irreconciliáveis” (conforme a sua tese), contadas por Nafissatou, dos factos ocorridos naquela tarde de 14 de Maio. Sustenta também que o acto podia ter sido consentido.

Segundo atesta o laudo médico, publicado pelo jornal “L´Éxpress,” Nafissatou foi estuprada e agredida, apresentando ferimentos na zona da vagina. Também foi detectado o rompimento de um músculo no ombro da empregada do hotel e os fluidos seminais encontrados no seu corpo pertenciam a DSK. Durante a entrevista no hospital de Manhattan, ela manteve a mesma narrativa e apresentava um estado psicológico caracterizado como de “alerta,” diz o relatório médico, constituindo por isso evidências reais de tentativa de violação. Não houve portanto dúvidas nenhumas, da parte do corpo clínico que examinou a camareira. Com base nestes pressupostos, a NYPD (polícia de Nova York), obteve um mandato de detenção contra DSK.
Cyrus Vince, ao esvaziar a queixa de Nafissatou, teve em linha de conta o passado da suposta vítima e a vida trânsfuga e meia marginal da africana. Acusou-a de ter mentido à polícia de imigração, e de ter ligações a um traficante de droga. A figura jurídica “In dubio pro reo”( na duvida, a favor do réu ), ou a presunção de inocência, foi aqui usada no seu limite máximo, esticada conforme quiseram os advogados de DSK.

Para o procurador não foi relevante que não tenha havido oferta de dinheiro para o acto sexual consentido, como seria lógico; também não foi importante a fuga precipitada do hotel de DSK, sem marcação da viagem, para o avião em direcção a França, onde não há acordo de extradição, valendo-se apenas do seu estatuto diplomático. Cyrus Vince não levou a sério o passado de abusador sexual compulsivo de DSK, com várias queixas e testemunhos credíveis, que atestam os seus impulsos e a sua hiperactividade sexual.
Uma equipa de advogados de luxo, com a defesa de Michael Jackson no seu currículo, opera milagres. Contra um advogado desconhecido e titubeante, foi como mudar a fralda a meninos.

A vagina de Nafissatou

DSK está às portas do paraíso. Se chegar a tempo a França, antes de 9 ou 16 de Outubro, data das primárias do Partido Socialista Francês, e depois de resolver estes pequenos entraves, poderá escolher, entre duas lindas mulheres, quem irá apoiar. De um lado está Madame Martine Aubry, presidente da Câmara de Lille, filha de Jacques Delors e actual secretária-geral do PSF. Do outro terá Mademoiselle Segolene Royal, (linda!), candidata derrotada nas últimas eleições, contra Nicolas Sarkosy.

A ala direita do PSF rejubila, à espera de levá-lo em ombros. Reserva-lhe uma subida apoteótica pelos Champs-Elisées em direcção ao Arc de Triomphe.
Daniel Cohn-Bendit já lhe escancarou as portas para o seu regresso.

A quem DSK resolver dar o seu apoio, tem a liderança do Partido garantida, quiçá o Palácio do Eliseu, a presidência da República Francesa.

É este o poder incomensurável da mediatização à escala global.

A vagina de Nafissatou Diallo merecia algum descanso e uma reforma discreta e tranquila, longe dos holofotes, por ter dado uma pequena ajuda.


José Luis Ferreira


sábado, 27 de agosto de 2011

Angola está mudada





Angola está mudada! Já lá vão trinta anos desde aquela manhã de cacimbo em que entrei para o avião rumo a Portugal, fugindo de uma guerra que devastava o país. Esse era o tempo das armas e da sua linguagem de fogo, das Kalashnikovs e dos Migs soviéticos, das minas e das emboscadas, da fome e dos milhões de mortos, dos dias amargos de um conflito fratricida, que teimava em cercear horizontes e que transformara Angola numa terra bastarda, à margem da comunidade internacional. Depois desse dia, passaram-se mais 12 anos de holocausto, com o seu cortejo macabro de destruição e ódio.

Mas é do futuro que eu quero falar hoje, já que o passado apenas corrói, vive paredes meias com o pessimismo e a descrença. Hoje Angola está bastante diferente. Em paz há nove anos, é dos países no mundo com maior índice de crescimento; do que precisa agora é de esperança, de inovação, criatividade, orgulho, amor-próprio e crença nas suas próprias capacidades.

A revista “Visão” de 18 de Agosto de 2011, apresenta uma reportagem sobre Angola que me deixa estupefacto. Ao ler o artigo, confesso que julguei estar num paraíso de ricos, de multimilionários americanos, ingleses ou alemães, em Marbella, Nice, na Côte-d’Azur ou em Cannes. Será que Angola já atingiu este nível de prosperidade e riqueza? Conforme leio e a funcionária da publicação quer dar a entender, o bairro Miramar em Luanda alberga os “capos” da pior espécie e a classe dirigente em Angola resume-se a um bando de abutres, que mais não fazem que roubar e sorver os bens e a riqueza do povo. Segundo a dita senhora, o champagne Mum e Moet et Chandom corre pelos bares e boîtes de Luanda, os jactos privados voam pelos céus e os carros de luxo percorrem a cidade. Os SUVs, os BMW X6s, os Porshes Cayenne, vindos do Dubai e os Range Rovers topo de gama são tão vulgares nesta cidade como o ar que se respira, fazem-nos suspirar de inveja e, qual inovação dos angolanos, apareceram agora motoristas para motos BMW, ou Suzuky1000, como nas capitais europeias, que transportam os executivos ricaços para as suas empresas, devido ao trânsito congestionado nesta caótica Luanda! Faltou falar nos helicópteros de aluguer, que, como em S. Paulo, no Brasil, levantam de plataformas/heliportos, construídas em terraços, para o centro da enorme metrópole de 20 milhões de habitantes. Também entre os jovens “há miúdos que têm 7 mil euros para gastar numa noite, nas discotecas, em bebidas e muito champagne para todos os amigos. E não é um caso ou dois, é corrente,” afirma uma angolana que prefere não se identificar (pois é, digo eu!). “E vê-se centenas de adolescentes de 18 anos com grandes carros”, diz a autora da reportagem.
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Poucos devem ser os países no mundo com tanta abundância e tanto dinheiro para gastar. Será que estamos nalgum Emirado Árabe, numa monarquia do golfo durante o primeiro boom petrolífero, ou ela refere-se aos familiares do Emir do Qatar? Parece-me mais que a autora imagina estar em Ciudade Juarez e veja os dirigentes angolanos como chefes de um cartel da droga, que espalham o dinheiro pelos afilhados e componentes dos gangs.

As estações de Televisão portuguesas de informação, bem podiam convidar esta senhora para um debate com contraditório, frente a alguém ligado a Angola que soubesse demonstrar o que está a ser feito para tirar este pais do subdesenvolvimento. A dita funcionária, querendo candidatar-se a um “Globo de Ouro” da SIC, ao julgar que remetia Angola para o mundo dos paraísos da corrupção, da falsificação e do crime, consegue o efeito diametralmente oposto. Em mim provoca um sentimento de satisfação e de felicidade, por saber que finalmente a riqueza está em poder dos angolanos e não nas mãos dos seus (dela), antepassados colonialistas, que durante a longa ocupação portuguesa de séculos, não quiseram partilhar a riqueza desta terra com os autóctones, contando-se pelos dedos de uma mão os ricos e os abastados indígenas criados durante este período. Assim, ganha o prémio do espectáculo pobre e da caricatura do verdadeiro jornalismo de ética e de verdade.

O que me move, ao responder a esta senhora, embora há muitos anos longe da terra que me viu nascer, por opção própria, além da minha nacionalidade angolana é o conhecimento de alguns dirigentes com quem trabalhei e conheço, reputando-os de gente honesta e empenhada; por isso não posso deixar passar em branco tanta palhaçada e tanta desfaçatez. Para a dita autora, mando um conselho: não se queira promover à custa de Angola. Não espalhe uma imagem negativa e perniciosa para Angola. Quem lhe paga e tem interesses obscuros nisso, diga-lhe que dê a cara. É triste o seu espectáculo. Do ventre da mãe Angola já saiu muita riqueza que alimentou muitos compatriotas seus. Portanto quando tiver sonhos de ambição, riqueza e glória profissional coíba-se de usar a mãe Angola para alcançar esses fins.

Tenho plena consciência das dificuldades, dos desequilíbrios, da pobreza, da falta de condições dignas, do défice democrático e da cristalização do poder com o seu desfile de fenómenos nocivos como o tráfico de influências, a corrupção e a troca de favores entre os membros das cúpulas da governação, há demasiados anos no poder e que ainda subsiste em Angola; da urgência e da premência em demonstrar ao mundo que há vontade política em construir uma sociedade nova e mais igualitária. Mas sei também que as coisas levam tempo, e que nenhuma nação saída de uma guerra de 30 ou mais anos consegue numa década corrigir essas disfunções e desigualdades. Mas este não é motivo de vergonha. Ou que o seja, mas justificada. Para um país que está a ser construído de raiz, que durante décadas foi privado do seu orgulho como nação, descaracterizado, com o seu território polvilhado de minas, com milhares de homens e mulheres desmobilizados da guerra, refugiados, estropiados, sem quadros, sem infra-estruturas, sem empregos, e com toda a espécie de problemas, alguma coisa já foi feita. Vergonha sim, passa Portugal, que depois de 800 anos de plena soberania, é tratado e remetido para a classificação de lixo, pelas agências internacionais de “rating,” e deixa-se atrasar 20 ou 30 anos em relação aos seus congéneres europeus. Não podemos comparar Angola com um país europeu estável e seguro, não é sequer comparável. São duas realidades geográficas diferentes, duas geoestratégias, duas concepções do mundo e duas rotas para o desenvolvimento diversas.

Esta contadora de histórias bem podia incluir algumas verdades do que se passa em Angola, deixar as efabulações, diversificar o seu texto e introduzir nele também algumas realizações do Estado angolano. Podia referir por exemplo, que os angolanos deixaram de trabalhar apenas como serviçais e existe agora uma classe média constituída por empregados bancários, jornalistas, comerciantes, médicos, enfermeiros, empregados hospitalares, advogados, engenheiros, formados pelas universidades angolanas e no exterior, empregados de restaurantes, empresários, funcionários públicos, prestadores de serviços com algum poder de compra e que fazem fila para comprar um apartamento de 150.000 US dólares na nova cidade – Kilamba, construída às portas de Luanda; e também uma elite política e outra endinheirada que não olham a meios para ostentar o seu novo-riquismo, tal como existe em Portugal e em qualquer parte do mundo.

Esquece-se de dizer, por exemplo que em Angola estão a ser construídos parques industriais como o de Luanda e Bengo (ZEE, zona económica especial), junto ao Rio Bengo, outrora terra de miséria e exclusão, a 30 Kms de Luanda, gigantesco pólo industrial com 8.300 hectares, e o da Huíla e do Bié, igualmente projectos ambiciosos. Na ZEE de Luanda e Bengo, foram construídas de raiz dez fábricas de tintas, fibra óptica, tubos PVC, arames de vedação, plásticos, etc. Existe aqui também um gigantesco Pólo Comercial, com 290 hectares, com potencialidades para o desenvolvimento agrícola e de serviços pela proximidade com o futuro aeroporto.

No Sul de Angola está a ser criado o Pólo de Desenvolvimento Industrial de Catumbela, na província de Benguela, com uma extensão de 2.869 hectares e que já tem aprovado cerca de 100 projectos de construção de empresas, fábricas, armazéns e instalação de serviços, projectado para atrair novos investimentos nas indústrias ligeiras e pesadas, para alavancar o desenvolvimento da região. Está em estudo uma parceria com o Taguspark de Portugal para que empresas das áreas do conhecimento e universidades se possam instalar neste pólo para o desenvolvimento tecnológico necessário.

À laia de informação e para sustentar aquilo que digo, transcrevo algumas passagens de notícias que os jornais vêm publicando ao longo dos anos, sobre relatórios e estudos económicos de organizações internacionais, para que se perceba o esforço e trabalho que estão a ser desenvolvidos em Angola. Sem dúvida que nada está feito ainda e que tudo falta fazer, mas sei que alguma coisa já começou a ser construída.

-Em 12 de Jun. 2007 o jornal Diário Económico trazia uma notícia do FMI onde dizia: "O Fundo Monetário Internacional (FMI) revelou que Angola é o país que tem o maior crescimento económico do planeta, devendo expandir-se em cerca de 35% este ano. Segundo o FMI, em 2002, com o fim da guerra civil, o país arrancou para um novo ciclo marcado por um forte crescimento económico, sustentado principalmente pelo aumento das receitas associadas ao petróleo, reconstrução de infra-estruturas produtiva e realojamento de cerca de 4 milhões de deslocados internos."
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-Em 29 de Out. 2008, o portal brasileiro UOL, referia citando a Lusa: - O governo angolano prevê um crescimento económico de 11,8% no próximo ano, segundo o Plano Nacional aprovado pelo governo, em conjunto com o Orçamento de Estado para 2009.
De acordo com o Plano Nacional do governo para 2009, a ampliação do Produto Interno Bruto (PIB) será sustentada fundamentalmente pelo sector não petrolífero, que tem crescimento previsto em 15,98%. Previsões
O Banco Nacional de Angola (BNA) já tinha admitido este mês que o crescimento económico angolano, que se aproximou de 20% no ano passado, será afectado pela actual conjuntura, que está derrubando o preço do petróleo, componente maioritária das exportações angolanas.
Consciente das dificuldades, diz o governo pela voz da ministra do Planeamento: "acções que possam garantir a melhoria das condições de habitação, o acesso à água potável, prioridade especial também será dada ao combate às grandes endemias".

- Em 27 de Outubro de 2009 um documento com o título “Macro-Brief, Out. 2009” o Banco Mundial e o FMI referiam: Assim, depois de crescimentos de 20,3% em 2007 e 13,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) de Angola deverá ter um crescimento real de apenas 0,2% este ano, com a retoma a surgir em 2010, com uma evolução de 9,3%.


- Em 13 de Abril de 2011, o jornal económico Oje citando a Lusa transcrevia relatórios do FMI segundo os quais: A economia angolana deverá retomar um crescimento de dois dígitos em 2012, atingindo os 10,5%, muito acima do crescimento económico previsto para a região, segundo as últimas previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI). As dificuldades em Angola são ao nível do controlo da inflação este ano, com os preços no consumidor a subir 14,6% (14,5 em 2010), mas alguma correcção já em 2012, com uma taxa de 12,4%.

José Luis Ferreira

domingo, 21 de agosto de 2011

Nights of Cabiria (mambo) by Nino Rota






House of Lords, British Parliament, UK



                                                                    














É a segunda câmara do Parlamento Britãnico, com Lordes hereditários e um número crescente de Lordes nomeados em vida, pelo monarca sob proposta do Primeiro-Ministro, câmara essa que vota tratados e algumas leis essenciais depois de votadas pela Câmara dos Comuns. Assim, tem papel de reflexão e eventual adiamento de deliberações em tratados e leis. Formalmente, é a principal câmara do Parlamento, mas, desde há mais de cento e cinquenta anos, perdeu, substancialmente, esse papel e tem resistido, por tradição às sucessivas propostas de extinção do Partido Trabalhista

J.L.

Hieronymus Bosch




Sobre Hieronymus Bosch podemos dizer que foi um pintor holandês que viveu entre os séculos XV e XVI (1450/1516). Os seus trabalhos retratam cenas de pecado, desejo, morte, traição e tentação, com utilização de figuras complexas, originais, imaginativas, simbólicas e caricaturais. Ninguém melhor que ele soube expor numa imagem a verdadeira essência da decadência e redenção do homem. Os seus três trípticos fundamentais são: "As tentações de Santo Antão, o tríptico do" Juízo Final" e "As tribulações de Job".  As imagens são grotescas e parecem todas saídas de sonhos, mas na realidade, saem dos medos do homem medieval. Os quadros de Bocsh fascinam qualquer um. A destruição, a decadência humana, o medo e o pecado tudo isso lá está espelhado de forma magistral.

J.L.

A segunda grande contracção


Keneth Rogoff

Kenneth Rogoff - © Project Syndicate, 2008. www.project-syndicate.org                   


Porque é que continuamos a referir-nos à recente crise financeira como a “Grande Recessão”?

Porque é que continuamos a referir-nos à recente crise financeira como a “Grande Recessão”? O termo baseia-se numa previsão errada e perigosa dos problemas que enfrentam os Estados Unidos e outros países, e levam a previsões e políticas erradas.

A frase “Grande Recessão” cria a impressão de que a economia está a seguir os contornos de uma recessão típica, apenas mais severa – algo como uma enorme constipação. É por este motivo, que ao longo deste período de abrandamento económico – os analistas que tentaram fazer analogias com anteriores recessões nos Estados Unidos, no período do pós-guerra, se enganaram tanto. Além disso, muitos políticos basearam-se na crença de que estamos apenas a viver uma recessão profunda que pode ser vencida com uma ajuda generosa de instrumentos políticos convencionais, sejam políticas orçamentais ou enormes resgates.

Mas o problema real é que a economia global está gravemente sobrealavancada e não existe uma solução rápida sem um plano que permita transferir riqueza dos credores para os devedores, seja através de “defaults”, repressão financeira ou inflação.

Um termo mais preciso, mas menos tranquilizador, para a recente crise é a “Segunda Grande Contracção”. Carmen Reinhart e eu proposemos este nome no nosso livro “This Time is Different” (“Desta vez é diferente”), de 2009, com base na análise que fizemos da crise como uma típica crise financeira profunda e não como uma típica recessão profunda. Como é óbvio, a primeira “Grande Contracção” foi a “Grande Depressão”, tal como foi enfatizado por Anna Schwarz e pelo falecido Milton Friedman. A contracção aplica-se não apenas ao produto e ao emprego, como numa recessão normal, mas a dívida e ao crédito, e a desalavacagem, que normalmente leva muitos anos a completar.

Porque discutir semântica? Imagine que tem uma pneumonia mas pensa que é apenas uma constipação. Poderá não tomar o medicamento correcto e esperar que a sua vida regressa à normalidade mais cedo do que é possível.

Numa recessão convencional, a retoma do crescimento implica um rápido regresso à normalidade. A economia não só recupera o terreno perdido, como no espaço de um ano, regressa à sua tendência de subida de longo prazo.

As sequelas de uma crise financeira profunda são totalmente diferentes. Como Reinhart e eu demonstrámos, demora, normalmente, mais de quatro anos para que uma economia alcance o mesmo nível de rendimento per capita que tinha antes da crise. Até ao momento, tendo em conta diversas variáveis macroeconómicas, incluindo o produto, emprego, divida, preços das casas e mesmo das acções, as nossas referências quantitativas baseadas em crises financeiras profundas no período pós-guerra mostraram ser, de longe, mais precisas do que a lógica convencional de recessão.

Muitos analistas defenderam que os estímulos orçamentais falharam, largamente, não porque foram mal orientados mas porque não eram suficientemente grandes para combater uma “Grande Recessão”. Mas numa “Grande Contracção” o problema número um é existir demasiada dívida. Se os governos que mantêm “ratings” da dívida elevados gastarem os seus recursos escassos de forma eficiente, a abordagem mais eficaz é renegociar e reduzir a dívida.

Por exemplo, os governos poderiam facilitar a redução das hipotecas em troca de uma percentagem em futuras apreciações dos preços das casas. Uma abordagem semelhante podia ser seguida pelos países. Por exemplo, os eleitores dos países ricos da Europa poderiam concordar com um resgate à Grécia muito mais elevado (um que seja, de facto, suficientemente grande para funcionar) em troca de pagamentos mais elevados dentro de dez a quinze anos se o desempenho da economia for acima da média.

Há alguma alternativa a anos de indecisões políticas?

Num artigo de opinião publicado em Dezembro de 2008, defendi que a única forma prática de diminuir o período que se avizinhava de desalavancagem dolorosa e abrandamento económico seria uma aceleração sustentada de uma inflação moderada, cerca de 4% a 6% durante vários anos. Claro que a inflação é uma transferência injusta e arbitrária dos rendimentos dos aforradores para os devedores. Mas, no final, esta transferência é uma abordagem mais directa para uma recuperação mais rápida. Eventualmente, irá acontecer de uma forma ou de outra, tal como a Europa está a aprender da forma mais dolorosa.

Alguns observadores consideram qualquer sugestão de inflação, mesmo que modestamente elevada, como uma forma de heresia. Mas as Grandes Contracções, ao contrário das recessões, são eventos muito pouco frequentes, e ocorrem apenas a cada 70 a 80 anos. Estes são os períodos em que os bancos centrais precisam de gastar alguma da credibilidade acumulada em tempos normais.

A pressa para superar a “Grande Depressão” ocorreu porque a maioria dos analistas e decisores políticos tinham em mente o modelo errado. Infelizmente, está demasiado claro o quão equivocados estavam.

Reconhecer que temos usado o modelo errado é o primeiro passo para encontrar a solução. A história revela que, muitas vezes, as recessões mudam de nome quando os problemas passam. Talvez os problemas se resolvam mais rápido se deixarmos o nome “Grande Recessão” e o substituirmos por algo mais apropriado, como “Grande Contracção”. É demasiado tarde para desfazer as más previsões e as políticas erradas que marcaram o período após a crise financeira. Mas ainda não é demasiado tarde para fazer melhor.


Kenneth Rogoff é professor de Economia e Política Pública na Universidade de Harvard University, e já assumiu o cargo de economista chefe no Fundo Monetário Internacional.



Love Theme: "The Godfather"



sábado, 20 de agosto de 2011

Marília dos gatos



Com o passar dos anos, Marília tornara-se uma mulher agreste e insuportável. Casada há vinte e seis longos Outonos, há quinze que adoptara para a sua vida em comum uma fórmula que considerava mágica e julgava ser a solução ideal para todos os males que, como um vírus, nos últimos tempos lhe tinham entrado pelas portas adentro. Pouco ou nada falava com o marido, chegando a comunicar com ele por meio de curtos bilhetes rabiscados à pressa, em toda a espécie de bocados de papel, guardanapos sujos de bâton e restos de comida, papel de embrulho, papel higiénico e até em pedaços de plástico cortados dos sacos das compras, que ia deixando pelo caminho por onde ele passava, o que tornava as palavras incompreensíveis, e agora até começara a usar o sistema de mensagens pela internet, para uma caixa qualquer que ela descobrira, inviabilizando deste modo a mais leve vontade de comunicar. Eram pequenos recados, espaçados nos dias, coisas que não podia deixar de transmitir, ou porque lhes falecera um tio, ou porque algum afilhado se casara, ou quando o carro precisava de revisão, ou se por exemplo era necessário pagar mais pelas obras do condomínio, enfim, um rol de obrigações a que não podiam faltar. Apenas usava a internet quando precisava de guardar uma prova (não fosse aquele malandro, pateta alegre dizer que não sabia, pensava ela), principalmente com assuntos de dinheiro, em que ela arquivava o recado na memória do computador. Fazia isto para afastá-lo de qualquer ideia de conversa, porque há tempos que o passara a considerar o maior erro da sua vida, mas uma vez que não podia descartá-lo, ia aplicar-lhe a dose certa e tornar-lhe a vida um poço de humilhações e desprezo.

A sua vida sexual reduzira-se a zero, viviam não em camas separadas, mas em quartos diferentes e partilhavam a casa apenas por interesse mútuo e o mais cínico comodismo. Não nutriam um pelo outro o mais leve sentimento afectivo, cuja falta se agravava por parte de Marília, que o vigiava e odiava profundamente, pois achava que a sua companhia a levava ao ridículo e a rebaixava, pelo seu aspecto algo desajeitado, forte e pachorrento, o cabelo grosso e enrolado, tipo escova de piaçaba e a quem ela chamava “boi”, sendo que a única ansiedade que o marido lhe provocava, acontecia no final do mês, quando o Oliveira depositava o dinheiro acertado entre eles, na conta comum, para a despesa mensal.
Marília era temente a Deus e fervorosa adepta de todos os santos e anjinhos do catálogo celestial, fazendo-o de uma forma sincera, pois acreditava realmente que eles a salvariam de uma possível tentativa de aproximação do Oliveira. Bloqueara-lhe todas as veleidades e instintos sexuais, fazendo do seu quarto uma fortaleza inexpugnável, fechando a porta por dentro sempre que lá se encontrava.
Marília deslocara o seu afecto e amor para os animais. Tinha verdadeira adoração pelos bichos e escolhera os gatos para amenizar-lhe as terríveis ondas de solidão. Nos últimos anos, trouxera para casa seis machos de criação e uma fêmea siamesa que cobria todos eles na época do cio. Contava Marília para quem a quisesse ouvir, que tinham os nomes dos seis santos padroeiros das principais cidades portuguesas, um para cada dia do Génesis, tendo o sétimo e último dia como o do descanso do Senhor, atribuído ao elemento feminino, um nome de mulher, duma rameira, que só podia ser Madalena, pois como toda a gente sabe, esta fora a prostituta da Bíblia.
Desabafava por vezes, com amigas e conhecidos, que nesta altura da vida em que se encontrava, tão desiludida estava com a raça humana, que olhava para os homens e não via neles, nada, absolutamente nada de bom, nem tinham sequer comparação possível, e estavam muitos planos abaixo, dizia a Marília, de um só pêlo, do mais ínfimo que fosse, de um dos seus adorados bichinhos. Cada vez que olhava para o marido, de tal maneira sentia asco, que se o visse nuzinho em pelota, nem que ele se pintasse todo de ouro em pó, ela alguma vez voltaria a ter alguma intimidade com ele.
Domesticara os dóceis animais e instruíra-os contra o Oliveira, pois quando tinha a porta do quarto aberta para arejar, deixava dois matulões meio selvagens à porta, que se curvavam eriçados com o rabo e as orelhas espetadas, os dentes aguçados e arreganhados, à mostra para o marido.
Certa vez a coisa ficou brava, no dia da morte de Geraldo, o padroeiro de Braga, pois ela, que naquela altura passava por uma crise hormonal e começava a sentir os sintomas da menopausa, irascível e inconstante, logo ali armou um tremendo escarcéu, que foi necessário chamar a polícia porque ela matava-o, acusando-o de envenenamento. Mas a coisa arrefeceu e ela substituiu rapidamente o falecido por outro padroeiro do mesmo nome e cidade, por consequência do mesmo dia da Criação.
Vivia um idílio permanente com os bichos. Chamava-lhe meus bebes, acariciava-lhes ternamente o pêlo centenas de vezes ao dia, no ventre, junto aos órgãos genitais, ou no lombo, eles ronronavam de prazer, puxa-lhes e retesava-lhes o rabo, ora ao Pedro de Évora, ora ao Tomás de Faro, beija-lhes a ponta dos narizes húmidos, dava-lhes a língua a lamber, levantava-os para trás das costas, fazia-os roçar na nuca e dizia-lhes ao ouvido: -ui,ui, hummm, como a mamã vos ama, meu deus! Era um autêntico festival de ternura para com os animais. Marília era verdadeiramente um poço de virtudes, uma carruagem de amor.
De noite saía e começava a caçada. Levava para dentro do Jeep Toyota duas caixas para animais de estimação e ia buscar a mãe, uma respeitável viúva, de idade avançada, que morava dois quarteirões mais à frente. Perto de casa, encostava disfarçadamente o carro junto aos muros de um pequeno descampado frequentado pelos animais vadios da vizinhança, à hora que estes saiam para acasalar, montava os alvéolos para bichos com comida fresca dentro, e ela, caçadora experimentada levantava a pequena ponte levadiça da porta da casinha, amarrava-lhe um cordel e colocava-se então estrategicamente atrás do Jeep, à coca que algum bicho lá entrasse. Mal percebesse que já tinha um gato na armadilha, puxava o cordel que desengatava o travão e zás, lá apanhara mais um. Trazia dois ou três por noite. Durante as horas seguintes ficavam a aguardar no carro, dentro do alvéolo, à espera de desenvolvimentos para a sua situação. Depois, logo que a Marília tivesse tempo levava-os à protectora dos animais que se encarregava de os tratar e encaminhar para o seu devido lugar, para alguma gataria do concelho.
Há algum tempo que o Oliveira desconfiava que a mulher já não funcionava com todos os neurónios; ou a loucura já se havia instalado no seu cérebro ou vinha a caminho em forte galopar. Um dia espreitou para dentro do quarto, numa altura em que os dois siameses se esqueceram de montar guarda à porta da dona e então viu-a, com toda a força da verdade nua e crua. A sua mulher estava ajoelhada frente ao altar improvisado no quarto, com dúzias de santos e igual número de lamparinas acesas, remoía uma reza, uma ladainha bizarra, de mão postas em sinal de oração e rodeada por todos os estimados bichanos da prole. Pedia aos santos por todos eles e benzia-os com o sinal da cruz. No dia seguinte deixou-lhe um e-mail em que se oferecia para levá-la ao padre da freguesia, o padre Firmino, para se confessarem, terem uma conversa os três, e se aconselharem em relação a algum desequilíbrio mental, que achava, ela estaria a sofrer. Perguntariam ao padre se valeria a pena consultarem um psiquiatra ou bastaria mesmo ele, com a ajuda de Deus para resolver a questão.
Foi a última vez (e já haviam passado três anos sobre este acontecimento), que o Oliveira teve a ousadia de sugerir qualquer coisa. Logo após ler o e-mail, Marília ficou em estado de choque, por saber que era aquilo que o marido pensava dela, estupefacta por haver alguém que duvidava da sua sanidade mental e furiosa por ver que ele não lhe tinha ainda o respeito devido e se atrevia a desafiá-la no seu próprio terreno, ele, um homem com menos valor que qualquer dos seus bichinhos queridos. Carregada de fúria e cega de raiva, Marília saiu do quarto, bateu com a porta, dirigiu-se a ele na cozinha e lançou-lhe à cara com todas as letras do mais puro vernáculo:
-Ó meu badamecozito, quem tu julgas que és? Então agora já pensas que eu sou a maluca da tua mãezinha ou quê? Vé lá se quem te manda para o manicómio sou eu, e para a choldra, seu maricas de merda, pedófilo, paneleiro sem vergonha! A partir daí o Oliveira fechou-se num mutismo total, que durou uma semana e só depois de um mês voltou a cumprimentá-la, recebendo apenas como resposta, uma nuvem e argolas de fumo acre na cara.
(continua)
José Luis Ferreira

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Marília dos gatos


(continuação)

O bom do Oliveira, ex-bancário reformado e sindicalista (ainda exercia a actividade remunerada, no sindicato dos banqueiros), não se preocupava nem com santos de altar, nem com animais. Gostaria de ter um cão, um Grand Dannois, um Husky, ou mesmo um Rotweiller, para mostrar toda a sua potência e comando, mas temia o deflagrar da terceira guerra mundial, que aconteceria lá em casa, com toda a certeza, se desembarcasse naquelas terras infestadas de inimigos, algum predador do género canino. Rezava a Deus e confessava-se ao domingo, depois de passar a noite de sábado trancado no quarto a ver filmes pornográficos e sites de orgias romanas, do tempo dos Imperadores, de Nero e Calígula, adaptados ao cinema por realizadores portugueses de vanguarda, gente com ideias próprias e com vontade de fazer coisas novas e originais, com meninas a partir dos 16 aninhos como atrizes, mas que passavam bem por dezoito ou mais, tal era o seu envelhecimento precoce; ou a fazer chamadas para linhas eróticas e telefonemas anónimos para números ao calha, propondo actos obscenos a mulheres da lista telefónica. Nas últimas semanas começara também a corresponder-se, timidamente, envergonhado e aterrorizado, com alguns tarados internacionais em trocas e partilhas de ficheiros encriptados, de jovens menores em poses sensuais, em contas ultra secretas de hard-core.

Marília fazia as refeições na sala, com um ou dois gatos ao colo e a taça de whiskas e leite, em alumínio, recortada com relevos de gatinhos de bigodes farfalhudos, na mesa. Dava-lhes comida pela colher e insistia com eles para comer. O sindicalista comia na cozinha, encolhido numa espécie de mesa minúscula, junto à porta de vidro da varanda, por onde passavam os inúmeros gatos da Marília, o que tornava o ambiente insuportável por estar constantemente a tropeçar nos bichos.
Ao domingo saía com o marido para a missa na igreja da freguesia onde moravam, na Penha da França, para manter as aparências, para calar a boca à má-língua e mostrar ao sr. Padre que nada demais se passava entre eles. Voltavam para casa direitos e concentrados, calados e de rostos fechados, no mesmo carro, a Marília voltava para os gatos e o Oliveira às suas buscas e navegações, pelos mares encapelados da Internet.

Foi num dia do descanso do senhor, o dia de Madalena, a meretriz, que as coisas se precipitaram. Voltaram da missa, eram horas do almoço e como sempre o Oliveira preparou qualquer coisa para comer e foi-se sentar no seu canto habitual, virado para a cozinha, a ver a TV, de costas para a varanda. Marília aguardava na sala que ele acabasse a refeição para se dirigir à cozinha, tratar do seu almoço e dos gatos. Sentou-se com o seu prato preferido de esparguete a carbonara e queijo parmesão ralado. Deliciava-se com o esparguete à italiana, quando sentiu as pernas arranhadas e mordidas por pequenos e pontiagudos incisivos e roçadas por dois novelos de pelo áspero e repulsivo. Por duas ou três vezes suportou as arranhadelas e as bicadas calado. À quarta ou quinta vez sacudiu os bichos com os pés e pontapeou-os violentamente. Os gatos gordos, mantidos e alimentados em parte com o seu dinheiro, reagiram mal e atiraram-se às pernas do Oliveira, aos guinchos e miando histericamente. Marília veio da sala apressada, olhou para a cena caricata do Oliveira a saltar, agarrando-se aos calcanhares e, fora de controlo, desferiu uma bofetada ao marido. Este enervado e desorientado, fora de si, deu-lhe um forte empurrão e uma violenta palmada, atingindo-lhe a zona do ouvido, o que a fez dobrar-se e tropeçar num dos gatos. Ao cair, Marília bateu com a outra têmpora na esquina de mármore do lava-louça, ficando inanimada e prostrada no chão da cozinha. Oliveira olhava aterrorizado para a cena grotesca e imediatamente viu, saindo dos ouvidos da mulher, um fio de sangue vivo e quente, ao mesmo tempo que descia das narinas outro caudal aos borbotões. Vendo a gravidade da situação, Oliveira ligou para o 112 e trinta minutos depois tinha uma equipa de paramédicos em sua casa. Logo de seguida apareceu a polícia, chamada pela emergência médica, pois tratava-se de um caso de violência doméstica. A PSP tirou alguns apontamentos, entrou no quarto dele, mexeu disfarçadamente em algumas coisas, principalmente em fotos, cds e dvds, que estavam ao lado do computador e levou-o para prestar declarações na esquadra do bairro. Marília estava em estado muito grave, ficou internada nos cuidados intensivos no Hospital, com traumatismo crânio encefálico.

Oliveira voltou para casa, deixaram-no voltar, aguardava deliberações da polícia, que organizava o auto de culpa. Descansava no quarto apenas há duas horas, preocupado com este turbilhão de acontecimentos, quando tocaram a campainha e viu uma mulher e um homem apresentarem-lhe o crachá da Polícia Judiciária. Mostraram um mandado de busca e pediram-lhe que os encaminhasse ao quarto.

A mulher sentou-se à secretária e durante uma hora vasculhou todo o disco rígido do computador. Hora e meia depois o Oliveira foi levado para a sede da P.J. para ser interrogado e apresentado ao Juiz de instrução. Dois dias depois o sr. Mário Oliveira foi acusado de homicídio involuntário e uso e difusão de pornografia infantil, tendo ficado em prisão preventiva. Após três meses a aguardar julgamento na prisão, foi finalmente levado à presença do tribunal que o condenou a pena efectiva de doze anos, na Penitenciária de Caxias, nos arredores de Lisboa.
Marília esteve ligada ao oxigénio e em coma profundo durante dois dias, findo os quais não resistiu a uma embolia cerebral e faleceu às 16 horas do segundo dia do seu calendário felino, o de S. João do Porto. No dia da sua morte a gataria em uníssono provocou tal agitação, miando e berrando durante a tarde e a noite que a vizinhança assustada chamou os bombeiros para averiguar o que se passava.

O Sr. Oliveira é hoje um homem amargurado. Os anos de prisão transformaram-no num indivíduo cabisbaixo, resignado, abúlico e obediente; quebraram-lhe a vontade, e o processo de despersonalização quotidiana que havia começado pela convivência com a Marília, atingira durante o longo período de isolamento o ponto máximo, aquilo para que a prisão fora feita, que consiste na perda contínua e sistemática de qualquer resto de orgulho que possa ainda existir no ser humano. Destroçado, com a alma em pedaços e o espírito vagueando por aí, sonhando com os dias iniciais do seu casamento, com épocas passadas de esperança e promessas de amor, Oliveira desaparecia aos poucos, sozinho e envergonhado, não conseguindo mais olhar de frente para o mundo. Já pouco restava do vaidoso empregado bancário, sorridente, solícito e eficiente, às vezes bajulador, que em tempos fora.
Dois anos depois de ter saído da prisão, Oliveira foi encontrado morto, derivado a um ataque cardíaco, numa esquina da Freguesia da sua querida Penha da França, o bairro onde há 65 anos nascera, crescera e vivera toda a vida.

O dia, era o dia do Santo Padroeiro de Lisboa, Santo António, o casamenteiro, o mesmo que um dia abençoara a sua união com Marília, e anos depois o vira morrer na sua cidade, ao entardecer, do primeiro dia da semana sagrada de trabalho do Senhor, na criação da sua obra máxima: a Terra, os Homens e os seus eternos conflitos.
José Luis Ferreira

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

É Warren Buffet quem diz:


A página de opinião do New York Times de 14Ago. traz um editorial espantoso de Warren Buffet, dono e CEO da Berkshire Hathaway (que por sua vez é dona da Moody’s) e o terceiro homem mais rico do mundo.
Além do dinheiro e do poder que tem, Buffet é considerado um pensador iconoclasta e pouco convencional, frequentemente citado pelas suas afirmações tão pertinentes como provocatórias. Finalmente é um filantropo à medida da sua fortuna: prometeu legar 83% à Fundação Gates. Quanto aos filhos, disse: “Quero deixar-lhes o suficiente para que sintam que podem fazer o que quiserem, mas não tanto que achem que não precisam de fazer nada.”

Para ter uma pequena ideia do que pensa Buffet:
“Não sinto culpa nenhuma em relação ao dinheiro. O que acho é que o dinheiro representa uma data de pagamentos à sociedade. É como se tivesse uns papeizinhos que posso transformar em consumo. Se me apetecesse, podia contratar dez mil pessoas para não fazer mais nada a não ser pintar o meu retrato até ao fim da minha vida. E o PNB subiria. Mas a utilidade desse produto seria nula e estaria a tirar a essas pessoas a possibilidade de serem cientistas, ou professores, ou enfermeiros. Todavia não faço tal coisa. Não utilizo muitos papeizinhos. Não há nada de material que queira muito.”

Ora bem, sendo Buffet um super investidor, com certeza que os seus conselhos podem ser seguidos em muitos lados. Como se sabe, os Estados Unidos também estão metidos numa alhada financeira maior do que as suas capacidades, com falta de investimento, desemprego e dívida soberana inflacionada.
E o que diz Buffet na página de opinião do New York Times?

“Os nossos dirigentes têm falado em “partilhar sacrifícios”. Mas quando os pediram, pouparam-me a mim. Perguntei aos meus amigos mega-ricos do que estavam à espera. Mas a eles também não aconteceu nada.
Enquanto os pobres e a classe média (...), a maioria dos americanos, luta para chegar ao fim do mês, nós, os mega-ricos, continuamos a beneficiar com extraordinárias reduções de impostos.(...) Alguns gerem investimentos que rendem biliões de dólares mas podem classificá-los como “juros” (“carried interest”) conseguindo assim um imposto à taxa de 15%. Outros compram activos futuros, vendem-nos dez minutos depois e pagam 15% de 60% do que ganharam, como se fossem investidores a longo prazo. (...)
No ano passado paguei apenas 17,4% sobre o meu rendimento sujeito a imposto, menos do que as outras vinte pessoas que trabalham no meu escritório. A carga fiscal desses empregados ficou entre 33 e 41%
Quem faz dinheiro com dinheiro, como os meus amigos super-ricos, pode pagar ainda menos do que eu. Mas quem faz dinheiro a trabalhar pagará certamente uma percentagem maior – provavelmente muito maior. (...)
No ano passado, cerca de 80% das receitas do Estado veio de Imposto sobre Capitais e IRS. Os mega ricos pagam Imposto sobre Capitais a 15% e praticamente não pagam IRS. Com a classe média é diferente: em geral caem nos escalões (...) em que apanham pesadas taxas de IRS. (...)
De acordo com uma teoria que tenho ouvido, eu devia recusar-me a investir quando as taxas são muito altas nos ganhos de Capital e Dividendos. Mas nunca me recusei, e os outros investidores também não. Trabalho com investimentos há 60 anos e ainda estou para ver alguém — nem mesmo quando o Imposto sobre Capitais era de 39,9%, em 1976-77 — fugir de um bom investimento por causa dos impostos sobre o lucro previsível. As pessoas investem para ganhar dinheiro e os impostos potenciais nunca as assustaram. E, para aqueles que afirmam que impostos mais altos impedem a criação de emprego, lembro que houve um aumento de 40 milhões de empregos entre 1980 e 2000. E todos sabemos o que aconteceu depois: impostos mais baixos e menor criação de postos de trabalho.”

Em seguida, Buffet dá algumas ideias e apresenta propostas concretas para subir os impostos sobre o Capital e reduzir o IRS:
"Eu deixaria as taxas para 99,7% dos contribuintes na mesma e continuava com a mesma redução de 2% no que os empregados pagam. Esta redução ajuda os pobres e a classe média, que precisam de todos os descontos que puderem.
Para quem tem um rendimento superior a um milhão de dólares (...) subiria imediatamente o imposto para o rendimento colectável superior a um milhão, incluindo, evidentemente, dividendos e ganhos de capital. E para quem ganhe dez milhões ou mais, sugeria um aumento ainda maior na taxa."

Mas o que interessa agora é apenas o seguinte: um homem que sabe de dinheiro como poucos reconhece que taxar menos o capital e mais o trabalho é o caminho errado para recuperar uma economia – mesmo não considerando a injustiça social evidente.

Se quiser ler a peça de W. Buffet siga a ligação:

http://www.nytimes.com/2011/08/15/opinion/stop-coddling-the-super-rich.html?nl=todaysheadlines&emc=tha212

Warren Buffet, Nouriel Roubini, o dinheiro e o mundo global



                                                                                               
"Se toda a gente gasta menos e poupa mais, temos o paradoxo keynesiano". Roubini está a prever a nova recessão.

Desta vez não são os comunistas nem os socialista, e nem sequer um daqueles que se arriscam a interrogar com timidez a trajectória para o abismo que a Europa, e agora os Estados Unidos, prosseguem alegremente.

As notícias que vêm da América são curiosas. Ontem, em artigo publicado no New York Times, o multimilionário Warren Buffett pediu mais impostos para os ricos. O título é encantador e diz tudo: "Párem de mimar os super-ricos", escreveu Buffet, pedindo ao congresso que não se assuste e avance - chega de proteger os milionários. "Os nossos líderes pediram a ''partilha de sacrifícios''. Mas a mim pouparam-me. Falei com os meus amigos mega-ricos para saber de que sacrifícios estavam à espera. Mas também eles não foram atingidos". Warren Buffet apela, exige, convida, sugere, e é mega-insistente: taxem os mais ricos. Não se assustem, que os ricos vão continuar a investir. Vivem disso. A sério, sem medos.

Igualmente interessante é a entrevista do mago das Finanças, Nouriel Roubini, ao Wall Street Journal. Roubini, conhecido pela proeza de ter previsto a crise que arrancou em 2008, conclui que com o cenário de crise que está em cima da mesa, afinal de contas Karl Marx tinha razão: "A certa altura o capitalismo pode auto-destruir-se". "Julgávamos que os mercados funcionavam, mas não funcionam. E o que, em termos individuais é racional - cada empresa sobreviver cortando os custos do trabalho [torna-se irracional] - mas menos custos de trabalho transformam-se em menos rendimento e em menos consumo para outros". E Roubini invoca o paradoxo keynesiano, cujas "atrocidades" foram denunciadas pelos economistas liberais da moda. "Se não se cria emprego, não há suficiente consumo, logo não há procura". Ora, "se toda a gente gasta menos e poupa mais no sector privado e público, temos o paradoxo keynesiano". Ou seja, se toda a Europa decidir ao mesmo tempo avançar com programas de austeridade toda a gente está a poupar e ninguém gasta: nenhum europeu vai estar disponível para comprar as nossas desejadas exportações, de onde nos pode vir algum alívio. Nenhum espanhol, nenhum italiano, nenhum britânico, nenhum grego, nenhum irlandês vai querer comprar os nossos sapatos (para apontar uma indústria que ainda está em expansão).

Existem soluções, não há é nenhuma vontade política de dar a volta ao texto - nem na Europa nem nos Estados Unidos, nem em sítio nenhum. Mas quando um multi-milionário grita contra o poder por proteger os multimilionários é porque chegámos, se calhar, a um exagero. Até Berlusconni, que não é de esquerda, já percebeu qualquer coisa. 

In Jornal "I"

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Robert Glasper


Jazz pianist Robert Glasper plays an original composition "Enoch's Meditation," with narrative from Martin Luther King's 1966 "We Shall Overcome" speech, Barack Obama's presidential election night victory speech from Grant Park in Chicago, audio from Dr. Cornel West, and a spontaneous piano reharmonization of the presidential anthem, "Hail to the Chief." This performance was recorded January 14th at WBGO Studios in Newark, New Jersey. Produced by Josh Jackson. Mix by Josh Webb, with assistance from David Tallacksen. Happy Inauguration 2009, from the jazz community!




Um conto de Graciliano Ramos







                                 Primeira aventura de Alexandre

Graciliano Ramos


Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.


Texto extraído do livro “Alexandre e outros heróis”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1981, pág. 11.

Graciliano Ramos



Quem foi:

Graciliano Ramos

"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"

                                                                             

Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogênito dos dezesseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime das secas e das suas que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico "Infância", assim se referia a seus pais: "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura".

Em 1894, a família muda-se para Buíque (PE), onde o escritor tem contacto com as primeiras letras. Em 1904, retornam ao Estado de Alagoas, indo morara em Viçosa. Lá, Graciliano cria um jornalzinho dedicado às crianças, o "Dilúculo". Posteriormente, redige o jornal "Echo Viçosense", que tinha entre seus redatores seu mentor intelectual, Mário Venâncio. Em 1905 vai para Maceió, onde freqüenta, por pouco tempo, o Colégio Quinze de Março, dirigido pelo professor Agnelo Marques Barbosa.

Com o suicídio de Mário Venâncio, em fevereiro de 1906, o "Echo" deixa de circular. Graciliano publica na revista carioca "O Malho" sonetos sob o pseudônimo de Feliciano de Olivença.

Em 1909, passa a colaborar com o "Jornal de Alagoas", de Maceió, publicando o soneto "Céptico" sob o pseudônimo de Almeida Cunha. Até 1913, nesse jornal, usa outros pseudônimos: S. de Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Lambda, este usado em trabalhos de prosa. Até 1915 colabora com "O Malho", usando alguns dos pseudônimos citados e o de Soeiro Lobato.

Em 1910, responde a inquérito literário movido pelo Jornal de Alagoas, de Maceió. Em outubro, muda-se para Palmeira dos Índios, onde passa a residir. Passa a colaborar com o "Correio de Maceió", em 1911, sob o pseudônimo de Soares Lobato.

Em 1914, embarca para o Rio de Janeiro (RJ) no vapor Itassuoê. Nesse ano e parte do ano seguinte, trabalha como revisor de provas tipográficas nos jornais cariocas "Correio da Manhã", "A Tarde" e "O Século". Colaborando com o "Jornal de Alagoas" e com o fluminense "Paraíba do Sul", sob as iniciais R.O. (Ramos de Oliveira). Volta a Palmeira dos Índios, em meados de 1915, onde trabalha como jornalista e comerciante. Casa-se com Maria Augusta Ramos.

Sua esposa falece em 1920, deixando quatro filhos menores. Em 1927, é eleito prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, cargo no qual é empossado em 1928. Ao escrever o seu primeiro relatório ao governador Álvaro Paes, “um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas em 1929, a verve do escritor se revela ao abordar assuntos rotineiros de uma administração municipal. No ano seguinte, 1930, volta o então prefeito Graciliano Ramos com um novo relatório ao governador que, ainda em nossos dias, não se pode ler sem um sorriso nos lábios, tal a forma sui generis em que é apresentado. Dois anos depois, renuncia ao cargo de prefeito e se muda para a cidade de Maceió, onde é nomeado diretor da Imprensa Oficial. Casa-se com Heloisa Medeiros. Colabora com jornais usando o pseudônimo de Lúcio Guedes. Demite-se do cargo de diretor da Imprensa Oficial e volta a Palmeira dos Índios, onde funda urna escola no interior da sacristia da igreja Matriz e inicia os primeiros capítulos do romance São Bernardo.

O ano de 1933 marca o lançamento de seu primeiro livro, "Caetés", que já trazia consigo o pessimismo que marcou sua obra. Esse romance Graciliano vinha escrevendo desde 1925. No ano seguinte, publica "São Bernardo". Falece seu pai, em Palmeira dos Índios.

Em março de 1936, acusado — sem que a acusação fosse formalizada — de ter conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935, é demitido, preso em Maceió e enviado a Recife, onde é embarcado com destino ao Rio de Janeiro no navio "Manaus". com outros 115 presos. O país estava sob a ditadura de Vargas e do poderoso coronel Filinto Müller. No período em que esteve preso no Rio, até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), voltou à Casa de Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção. Seu livro "Angústia" é lançado no mês de agosto daquele ano. Esse romance é agraciado, nesse mesmo ano, com o prêmio "Lima Barreto", concedido pela "Revista Acadêmica".

Foi libertado e passou a trabalhar como copidesque em jornais do Rio de Janeiro, em 1937. Em maio, a "Revista Acadêmica" dedica-lhe uma edição especial, de número 27 - ano III, com treze artigos sobre o autor. Recebe o prêmio "Literatura Infantil", do Ministério da Educação", com "A terra dos meninos pelados." Em 1938, publica seu famoso romance "Vidas secas". No ano seguinte é nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário no Rio de Janeiro. Em 1940, freqüenta assiduamente a sede da revista "Diretrizes", junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros "conhecidos comunistas e elementos de esquerda", como consta de sua ficha na polícia política. Traduz "Memórias de um negro", do americano Booker T. Washington, publicado pela Editora Nacional, S. Paulo.

Publica uma série de crônicas sob o título "Quadros e Costumes do Nordeste" na revista "Política", do Rio de Janeiro. Em 1942, recebe o prêmio "Felipe de Oliveira" pelo conjunto de sua obra, por ocasião do jantar comemorativo a seus 50 anos. O romance "Brandão entre o mar e o amor", escrito em parceria com Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz é publicado pela Livraria Martins, S. Paulo.

Em 1943, falece sua mãe em Palmeira dos Índios. Lança, em 1944, o livro de literatura infantil "Histórias de Alexandre". Seu livro "Angústia" é publicado no Uruguai. Filia-se ao Partido Comunista, em 1945, ano em que são lançados "Dois dedos" e o livro de memórias "Infância".
O escritor Antônio Cândido publica, nessa época, uma série de cinco artigos sobre a obra de Graciliano no jornal "Diário de São Paulo", que o autor responde por carta. Esse material transformou-se no livro "Ficção e Confissão". Em 1946, publica "Histórias incompletas", que reúne os contos de "Dois dedos", o conto inédito "Luciana", três capítulos de "Vidas secas" e quatro capítulos de "Infância". Os contos de "Insônia" são publicados em 1947. O livro "Infância" é publicado no Uruguai, em 1948. Traduz, em 1950, o famoso romance "A Peste", de Albert Camus, cujo lançamento se dá nesse mesmo ano pela José Olympio. Em 1951, elege-se presidente da Associação Brasileira de Escritores, tendo sido reeleito em 1962. O livro "Sete histórias verdadeiras", extraídas do livro "Histórias de Alexandre", é publicado. Em abril de 1952, viaja em companhia de sua segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos, à Tcheco-Eslováquia e Rússia, onde teve alguns de seus romances traduzidos. Visita, também, a França e Portugal. Ao retornar, em 16 de junho, já enfermo, decide ir a Buenos Aires, Argentina, onde se submete a tratamento de pulmão, em setembro daquele ano. É operado, mas os médicos não lhe dão muito tempo de vida. A passagem de seus sessenta anos é lembrada em sessão solene no salão nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão presidida por Peregrino Júnior, da Academia Brasileira de Letras. Sobre sua obra e sua personalidade falaram Jorge Amado, Peregrino Júnior, Miécio Tati, Heraldo Bruno, José Lins do Rego e outros. Em seu nome, falou sua filha Clara Ramos.

No janeiro ano seguinte, 1953, é internado na Casa de Saúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a falecer, vitimado pelo câncer, no dia 20 de março, às 5:35 horas de uma sexta-feira. É publicado o livro "Memórias do cárcere", que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final.

Postumamente, são publicados os seguintes livros: "Viagem", 1954, "Linhas tortas", "Viventes das Alagoas" e "Alexandre e outros heróis", em 1962, e "Cartas", 1980, uma reunião de sua correspondência. Seus livros "São Bernardo" e "Insônia" são publicados em Portugal, em 1957 e 1962, respectivamente. O livro "Vidas secas" recebe o prêmio "Fundação William Faulkner", na Virginia, USA. Em 1963, o 10º aniversário da morte de Mestre Graça, como era chamado pelos amigos, é lembrado com as exposições "Retrospectiva das Obras de Graciliano Ramos", em Curitiba (PR), e "Exposição Graciliano Ramos", realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em 1965, seu romance "Caetés" é publicado em Portugal.

Seus livros "Vidas secas" e "Memórias do cárcere" são adaptados para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, em 1963 e 1983, respectivamente. O filme "Vidas secas" obtem os prêmios "Catholique International du Cinema" e "Ciudad de Valladolid" (Espanha). Leon Hirszman dirige "São Bernardo", em 1980. Em 1970, "Memórias do cárcere" é publicado em Portugal.


Bibliografia:
- Caetés - romance - São Bernardo - romance - Angústia - romance - Vidas secas - romance

- Infância - memórias - Dois dedos - contos - Insônia - contos - Memórias do cárcere - memórias

- Viagem - impressões sobre a Tcheco-Eslováquia e a URSS. - Linhas tortas - crônicas

- Viventes das Alagoas - crônicas - Alexandre e outros irmãos (Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República). - Cartas - correspondência pessoal.
Dados extraídos de livros do autor, internet e caderno "Mais!", da Folha de São Paulo, edição de 09/03/2003.













Carmina Burana ~ O Fortuna | Carl Orff ~ André Rieu





George Soros quer Portugal e Gécia fora do euro



                                                                                  
Sair da moeda única e deixar a União Europeia (UE). Para o histórico investidor húngaro-americano George Soros, a crise da dívida em que está mergulhada a zona euro não deixa margem às economias portuguesa e grega que não seja abandonar o projecto europeu.
                                                                                       
Por seu lado, também ministro alemão das Finanças está contra as ajudas ilimitadas aos países da Zona Euro afetados pela crise e advertiu que "não haverá uma salvação a qualquer preço". Em entrevista à revista “Der Spiegel”, Wolfgang Schäuble refuta expressamente a criação de títulos de dívida comum europeia, os chamados eurobonds, e afirma que a alternativa é promover reformas “passo a passo” para que tenham a concordância dos cidadãos.

George Soros: “O problema grego foi tratado tão mal que a melhor coisa a fazer neste momento seria a saída ordeira” da zona euro e da própria UE, propõe Soros, em entrevista publicada na revista alemã Der Spiegel citada pela AFP. O que Soros propõe para Portugal é exactamente o mesmo caminho. Defendendo uma saída ordeira, diz, “a UE e o euro “sobreviveriam”.

O investidor, que já se manifestara contra a “crónica divergência” europeia, voltou a falar na necessidade de os países da zona euro acertarem um mecanismo comum de emissão de euro-obrigações (títulos de dívida europeus). “Quer queiramos ou não, o euro existe. E para que possa funcionar de forma correcta, os países da zona euro devem ser capazes de refinanciar uma grande parte das suas dívidas nas mesmas condições”, justificou, insistindo numa ideia que defendeu em Março num artigo publicado pelo Project Syndicate.

Soros, muito crítico da posição alemã – que se opõe à criação de um esquema de emissão de obrigações europeias –, fez questão de sublinhar que não tem uma intenção especulativa contra o euro. No artigo de Março, Europa re-dividida?, defendia que a emissão de títulos de dívida europeus devia ser uma das atribuições do fundo de resgate do euro, promovendo a integração europeia. O último Conselho Europeu, em Julho, alargou as regras de funcionamento do fundo no âmbito do segundo resgate à Grécia, atribuindo-lhe maiores competências, dando assim um passo nesse sentido. Mas a criação de um verdadeiro mecanismo de euro-obrigações continua a não gerar consenso no interior do Eurogrupo. Itália ainda ontem referiu que o caminho da integração europeia deve ser a institucionalização de obrigações europeias. A Alemanha afasta esse cenário.

À Der Spiegel, Soros explicou que, ao defender a hipótese de saída de Portugal e Grécia da União Europeia, não pretende lutar “contra o euro”, contrapondo mesmo que “os chineses estão muito interessados numa alternativa ao dólar e farão tudo o que for preciso para ajudar os europeus a salvá-lo [a moeda única]”.

Diferentes taxas de juro incentivam à consolidação, diz Schäuble

Berlim voltou a marcar posição contra as ajudas ilimitadas aos países periféricos tocados pela crise das dívidas soberanas e especificamente contra a emissão de obrigações europeias. “Existem certos mecanismos de apoio que desenvolveremos sob condições estritas”, disse o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble.

Numa entrevista a publicar esta semana na mesma revista, Schäuble assegurou que “não haverá uma divisão de dívidas nem um apoio ilimitado”. A explicação? Enquanto for necessário, sustentou, os países devem ter “diferentes taxas de juro para que haja incentivo e mecanismos de sanção para forçar a consolidação”. E, nesse quadro, disse, a emissão de títulos de dívida comuns – as euro-obrigações, são indesejáveis, “a menos que cada país desenvolva a sua própria política de finanças”.


“Vamos melhorar significativamente o pacto de estabilidade” mas só “podemos reforçar as instituições europeias passo a passo” por causa da aceitação dos cidadãos, o que implica um processo “doloroso e por vezes lento”, argumentou o ministro alemão das Finanças, num artigo que a revista “Der Spiegel” publica na próxima semana.

O ministro alemão das Finanças insiste que "não haverá uma divisão de dívidas nem um apoio ilimitado. Existem certos mecanismos de apoio que desenvolveremos sob condições estritas". Schäuble sublinha que “exclui as euro-obrigações a menos que cada Estado-membro desenvolva a sua própria política de finanças”, porque contribuem para uma comunitarização de parte da Zona Euro.

Por outro lado, continuam a aumentar na Alemanha as críticas à decisão do Banco Central Europeu (BCE) de comprar títulos de dívida soberana dos países afectados pela crise.

Schaüble pronuncia-se a propósito do encontro de terça-feira, em Paris, entre os líderes do eixo franco-alemão, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel. A presidência francesa revela que a agenda está relacionada com a “reforma da governação da Zona Euro”.

O encontro versará as novas regras de disciplina orçamental na Zona Euro e evitar o alastramento da crise da dívida soberana europeia. A Alemanha quer sanções mais eficazes para aqueles países que não cumprirem as regras do pacto de estabilidade, enquanto ontem o ministro italiano das Finanças alegava que as obrigações comuns – eurobonds – teriam evitado a atual crise. Esta opinião também colhe apoio nos partidos na oposição a Merkel.

Os alemães também não estão confiantes no aumento da capacidade do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), com capacidade de empréstimo de 440 mil milhões de euros. Este fundo poderá ser utilizado para resgatar a dívida dos Estados da Zona Euro em dificuldades-

A França, em risco de ver a sua notação desvalorizada, quer ver a implementação rápida dos instrumentos acordados na cimeira de 21 de julho, e para impedir o contágio da crise da dívida.

Recolha de artigos de imprensa efectuada por T.C.




domingo, 14 de agosto de 2011

Rubem Braga




(Excertos do Blog docemagia: 200 crónicas escolhidas - Rubem Braga)

Nunca deixou de escrever regularmente crônicas para jornais e revistas, vindo a constituir um verdadeiro fenômeno o de ser o único escritor a conquistar um lugar definitivo na nossa literatura exclusivamente como cronista. Abordando sempre assuntos do dia-a-dia, falando de si mesmo, de sua infância, mocidade, primeiros amores, Rubem Braga impregna tudo que escreve de um grande amor à vida - a vida simples, não-sofisticada, dos humildes e sofredores. Tem predileção especial pelas coisas da natureza, tomando freqüentemente como tema o mar, os animais, as árvores. Não apenas as suas crônicas de amor e exaltação à mulher, mas também as que dedicou a passarinhos, borboletas, cajueiros, amendoeiras e pescarias são das mais belas páginas de nossa literatura.
Este livro reúne o que há de melhor na obra daquele que é considerado, com justiça, o maior cronista brasileiro.

O CONDE E O PASSARINHO
SENTIMENTO DO MAR

Passo pela padaria miserável e vejo se já tem pão fresco. As jogadas e os camarões estão aqui. Está aqui a garrafa de cachaça. Você vai mesmo? Pensei que fosse brincadeira sua.
Arranje um chapéu de palha. Hoje vai fazer sol quente. Andamos na madrugada escura. Vamos calados, com os pés rangindo na areia. Venha por aqui, aí tem espinhos. Os mosquitos do mangue estão dormindo. Venha. Arrasto a canoa para dentro da água. A água está fria. Ainda e quase noite... O remo está úmido de sereno, sujo de areia. Sente ali na proa, virada para mim. Olhe a água suja no fundo da canoa. Ponha os pés em cima da porta. Eu estou dentro d'água até os joelhos, empurro a canoa e salto para dentro. Uma espumarada de onda fria bate na minha cara. Remo depressa, por causa da arrebentação. Fique sentada, não tenha medo não. Firme aí. Segure dos lados. Não se mexa! Firme! Ooooi.. Quase! Outra onda dá um balanço forte e joga um pouco de água dentro do barco. Estou remando em pé, curvado para a direita, com esforço. A outra onda passa mansa, mansa, a proa bate n'água e avança. O remo esta frio nas minhas mãos. Eu o mergulhei dentro d'água para limpar a areia. A água que escorre molha as mangas de meu paletó. 0 mar está muito calmo. Esse ventinho que está vindo e passando em seus cabelos é o vento da terra. O terral vem de longe, lá do meio da terra, dos matos dormentes atrás dos morros. Vem da terra escura para o mar escuro. Nós iremos com ele.
Levantei a vela encardida. O meu leme está quebrado, mas tenho o remo. Vamos um pouco beirando a praia para o norte. Agora o ventinho nos pega. A vela treme feito mulher beijada. Fica túmida feito mulher beijada. As vezes, a força do vento diminui um pouco, e ela bambela, amolece, feito mulher possuída. Olhe lá a sua casa. Não está vendo, não? O pão está bom? Se você comer todo agora, vai ficar com fome lá fora. Me dá essa cuia, vou tirar a água da canoa. Raspo o fundo do barco, onde o cheiro forte e enjoado da maresia, esse cheiro que eu amo, embebeu para sempre o lenho. Viro um pouco a vela, sento, e passo o remo para a esquerda. O leme, assim como está, ajuda. Vamos cortando a água maciamente... A água está cinza, escura, pesada, como óleo. O balanceio nos leva. A praia pobre ficou lá longe, com luzinhas piscando. Estamos quietos, e ela rói o pão olhando a água. A água fala alguma coisa ao batelão, lambendo seu corpo, numa ternura de velha amiga com velho amigo.
Ela está quase deitada. O frio do fim da noite, o ar cheio de água, com um cheiro úmido, me faz abrir as narinas, apaga o meu sono. Na penumbra imensa seus cabelos parecem úmidos sobre a testa morena. Nós avançamos no bamboleio manso, conversando com moleza. A sua voz me vem, atravessando o vento fraco, entre a voz da água na beira da canoa. Seu corpo, na proa, sobe e desce no horizonte... Ela está virada para mim. Contempla lá atrás a terra que vai morrendo no escuro, que é apenas um vago debrum sujo além da água. Eu olho a água. Tenho vontade de beijar a água. Beijar de leve a flor salgada da água, depois beijar com lábios úmidos, com pureza, de manso, aquela boca sob os olhos negros, sob a testa morena. Mas isso é apenas um desejo à-toa, sem força nenhuma, um desejo que sabe que veio à toa e que vai à toa.
Acendo um cigarro e perguntou - Você quer fumar?
A minha amiga não fuma, e ri. Ri muito, como se eu tivesse ficado triste muito tempo e de repente tivesse dito uma coisa engraçadíssima. Ri... Seu riso quebra, parte, destrói o encanto molengo da madrugada. L como se estivéssemos em terra e, por exemplo, fizesse sol, em uma tarde comum, ou nós andássemos depressa pela rua. Seu riso rasga a calma do mar escuro, como se o mar não estivesse soluçando sob a canoa.
Uma claridade pastosa, débil, vem lá do fundo sobre o qual o seu corpo deitado se balança. E nós conversamos animadamente, como se estivéssemos em um bonde, fôssemos a um cinema. Não estamos sozinhos no mundo, em uma canoa no meio do mar. A nossa vida não é apenas esta velha canoa, esta vela encardida e pequena, este remo úmido. Somos gente da terra, sem nenhuma evasão nem mistério. Conversamos. Eu conto histórias do mar, como se fosse um velho pescador. Ela me interrompe para contar uma coisa - uma coisa terrena, acontecida na terra, dentro de uma casa na terra, com lâmpada elétrica, onde os homens se atormentam. E eu ouço, me interesso. Desci a vela. Vou remando, remando tão bestamente como se os músculos de quem rema não tivessem alma, como se a água rompida pelo remo não tivesse músculos e alma, como se eu jamais tivesse sentido pulsar, nas minhas velas rolando ondas, a
vertigem calma do mar. Remo, não há mais encanto nenhum. Tudo vai clareando no ar e na água. Remarei, pescarei. Pedirei a ela que se levante para que eu possa descer a pedra pela proa, até sentir bater na lama. Pescarei. Se ela estiver cansada, se ela achar cacete, voltarei para terra conversando. Ela achará cacete. Ela é da terra, está viciada pela terra, e eu não poderia lhe ensinar meu sentimento. Meu sentimento é inútil, eu converso conversas da terra com essa filha da terra. Eu pescarei e assobiarei um samba. Eu remarei para a terra logo que ela estiver cansada do mar.

Janeiro 1935