Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Uma História Comum (2)

(continuação)                                           



Uma Lição para o Futuro

O golpe violento da espada cortou-lhe a garganta, junto à cabeça. O corte foi tão profundo e forte, feito de frente, num movimento brusco de cima para baixo, na diagonal, que apenas ficou uma ligeira extensão de pele a segurar as duas partes do corpo. O soldado voltou a levantar a espada e empurrou-a no sentido horizontal para debaixo da cavidade torácica, a meio do abdómen, trespassando o coração e os pulmões do segundo homem que lhe quis fazer frente. A seu lado, outro companheiro disparava o fuzil e a pistola contra dois guerreiros que vinham de encontro a eles, ameaçando-os com as compridas lanças. Do outro lado do círculo outros marinheiros disparavam e brandiam as espadas e as adagas contra alguns indígenas, e limpavam o terreno para que D. Rodrigo se assenhorasse do lugar. Bastaram mais alguns tiros e algumas mortes de velhos e mulheres para que a pouca população do aldeamento se ajoelhasse e rogasse que os deixassem viver. As mulheres agarravam-se às pernas dos soldados e rogavam misericórdia, as crianças encolhiam-se paralisadas de medo. Então o corsário, de pé, calmo mas atento, com a camisa branca de punhos de renda apertada nos pulsos, descansando a pesada bota sobre as raízes de uma frondosa árvore, e rodando um anel com o sinete de oficial da Armada de Sua Majestade, ao lado de outro, no dedo médio, com o brasão papal, com um brilho divertido no olhar e as faces rubras de prazer sangrento, suspirou entre duas baforadas sôfregas de fumo acre do charuto colombiano e ordenou que acabassem com aquilo, pegassem fogo ao que sobrava, matando tudo o que vivesse. Apenas os animais de criação seriam poupados para o repasto do exército. Não houve prisioneiros. Os que se esconderam entre os arbustos foram perseguidos até que os soldados se certificaram que ninguém continuava vivo. A aldeia ardeu durante vários dias.

Francisco Munõz era um marinheiro que há muito acompanhava D. Rodrigo nas suas navegações pelo mundo. Percorreram milhares de milhas em busca da fortuna, procurando ouro, atacando e saqueando o espólio de navios piratas, árabes e muçulmanos, ou de quem andasse no mar em expedições de exploração científica, procurando novas rotas, portos e comércio com outros povos ou simplesmente traficando escravos. De navegadores ao serviço de Sua Majestade, facilmente se transformavam em corsários no alto mar, ou em força privada, em terra, protegendo algum castelo e os campos em volta e oferecendo os seus préstimos a fidalgos, à nobreza ou a algum cardeal poderoso, consoante aquele que melhor lhes pagasse. Foi este o motivo da sua estadia em Itália, no passado, comandando um pequeno exército de trinta homens, durante vários anos, protegendo um nobre cavaleiro, um duque de Génova, ao serviço de quem praticaram vários crimes, guerras privadas, emboscadas, assaltos e extorsões. Francisco Munõz era um sanguinário, assassino profissional e dizia que o seu maior sonho, era um dia possuir e embalsamar um crânio humano. Já tinha experimentado dedos e orelhas de homens que torturara e matara, mas o seu objetivo principal era obter um crânio e fazer dele um pequeno troféu que transportaria no cinto, ou num bornal, para que o temessem como um verdadeiro caçador de cabeças.

Quando o massacre da aldeia terminou, Munõz dirigiu-se ao corpo do homem a quem quase decepara a cabeça e cortou o bocado do tecido que ainda o ligava ao corpo. Tudo estava envolto em sangue, que vertia em borbotões formando uma poça extensa. Trazia um feixe de ervas nas mãos e embrulhou a cabeça nas plantas para estancar o sangue. Levou o objeto consigo, junto de outros pertences seus, dentro de um saco de estopa e fez toda a longa caminhada de regresso ao acampamento, feliz por finalmente possuir aquilo que tanto sonhava. Durante vários meses, elaborou várias técnicas, descolando a carne, raspando e secando o crânio, que transportava para onde quer que fosse, deixando um cheiro nauseabundo atrás de si. Todos lhe tinham um medo atroz, era um homem de estatura elevada, acima do normal. Munõz andava sempre com várias armas à cintura e a tiracolo:     duas  espingardas presas a duas correias de couro cruzadas nas costas, vários sacos de pólvora, chumbo e pederneira pendurados no peito e pendendo dos cinturões; duas pistolas à cintura, um punhal comprido e uma adaga árabe curva, em meia-lua, presa numa coxa e a outra na bota de cano alto, faziam dele uma figura terrivelmente assustadora. Por detrás de uma barba espessa, escondiam-se duas orelhas donde pendiam grossas argolas de ouro puro. Tinha o cabelo preso atrás num rabo-de-cavalo comprido e uma face quase negra, donde sobressaiam dois olhos chamejantes e uma boca quase sempre cerrada, que se transformava num esgar assassino.
Os corpos ficaram abandonados aos animais selvagens. Quem passasse por ali nos dias seguintes poderia ver pedaços de corpos e membros rasgados pelos lobos e pelas hienas. Os cães e os pássaros entretinham-se a puxar pelas pernas e pelos braços dos cadáveres. A povoação tornou-se pasto dos abutres. Um cheiro a putrefação sentia-se ao longe, a quilómetros  dali.                                                                                                                         
Os novos senhores da selva abandonaram o lugar. Lavaram-se numa corrente de água que passava perto. Tingiram o rio caudaloso, de sangue. Descansaram algumas horas e regressaram ao acampamento perto da praia. Segundo o comandante, num raio de centenas de quilómetros, em breve se saberia do sucedido e o medo reinaria sobre aquela terra. Só assim se abreviaria e evitariam mais mortes e futuros incómodos. Era boa, a pacificação, e estava concluída. Deus haveria de recompensar o sacrifício por eles feito de aniquilar estes seres, que, por percalço divino, viviam entre a bestialidade e o inferno.

Chegados ao acampamento, Frei Bartolomeu Bonifácio Benevides deu-lhes as boas vindas, aspergiu-os com água benta, e benzeu todo o grupo, ajoelhados. Nessa noite, a festa foi de grande intensidade. Beberam mais do que habitualmente. A música e os gritos, os urros e os choros ouviam-se nos porões das caravelas. Os instintos mais primitivos libertaram-se naquela noite. Transformados em bestas, em lobos esfaimados sedentos de sangue, buscavam novas vítimas. Houve quem quisesse ir ao navio matar mais alguns, mas esses estavam protegidos pelo comandante, pois renderiam uma valiosa fortuna. O sangue humano e o seu odor característico provocavam neles um efeito de psicose coletiva, contagiante, um êxtase catártico, que agora era difícil travar. Alguns marinheiros diziam que aquela carne não era humana, de nada valia, pois era demasiado macia e facilmente era penetrada pelas espadas e pelos facalhões. O cheiro a carne humana queimada pairava no ar, o próprio chão exalava um vapor tenebroso, colara-se nas roupas dos marinheiros, nos cobertores, misturava-se com os restos dos animais que mataram e esfolaram no regresso. Toda a enseada exalava um odor a suor, a sacrifício e a morte. O comandante Rodrigo embebedara-se e adormecera vestido dentro da sua tenda. O frade Bartolomeu Bonifácio Benevides voltara para a nau, instalara-se confortavelmente, bebera vinho de melhor qualidade e comera dois suculentos bifes de carne fresca de veado e ainda algumas costeletas dos porcos trazidos da aldeia. Deitara-se com as vestes da Ordem, mas antes fizera a oração e agradecera a Deus o privilégio de servir o Papa e acompanhar D. Rodrigo González Navarro na mais bela das expedições.

Durante muitas horas festejou-se a conquista destas novas terras a que chamaram de Terra do Futuro. Mais tarde Sua Santidade haveria de lhe atribuir um nome católico e Sua Majestade a Rainha María Stewart registá-la-ia como a nova possessão do  Reino.                                            

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A abordagem tinha sido devastadora. A estratégia surtiria os seus efeitos ao longo das próximas décadas. O medo instalara-se entre os nativos daquela região. Começaria também para eles a mais longa e dolorosa das humilhações. O Papa e as Ordens religiosas efetuariam um trabalho de mentalização sistemático e eficaz, em parceria com o poder militar e civil, amasiando-se com estes e usufruindo dessas vantagens. Construíram-se impérios e sistemas de governo, estradas, templos, pontes e caminhos-de-ferro, à base da mão-de-obra que estes homens ofereciam.
Passaram-se décadas até que um frade português, jesuíta, de nome António Vieira chamasse a atenção para as práticas desumanas contra os nativos. Só a partir daí se suavizaram os métodos e se tornou branda a catequização, a evangelização e o tratamento a eles reservado.

As Terras do Futuro demoram a justificar este nome. Nas praias e nos areais extensos surgem cadeias de hotéis, resorts, casinos e condomínios de luxo. Os escravos das galés são hoje cavalheiros, usam fatos da Bond Street e transferem milhões entre offshores das Cayman Islands , as Bermudas e o Luxemburgo.                                               

O tempo e as marés levaram consigo os nomes dos corsários e dos piratas sanguinários que usavam caveiras penduradas ao peito. As grandes caravelas jazem no fundo dos oceanos, carregadas de ouro vindas dos reinos de Malabar e do sultão de Samorim. A erosão e o vento afastaram a memória daqueles dias, transformoram tudo em cinzas e pó, mas rezam as lendas mais antigas, (e digo porque ouvi da boca das mulheres anciãs), que nas noites de pouca lua, quando a luz apenas se resume a uma débil chama prateada, acendem-se repentinos fogos, aqui e ali, e os espíritos dos dois nativos curiosos surgem do nada, vagueiam por aquelas areias, interrogando as conchinhas da praia e perguntando aos búzios porque terão morrido daquela forma. E há mesmo quem diga que os peixes vêm falar com eles à beira–mar.

Dezembro de 2011

José Luís Ferreira






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