Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Um exemplo



O assunto não merece mais que duas ou três linhas e talvez interesse apenas àqueles que, tal como eu, gostam do pontapé na bola, vibram com a “affición” e não perdem uma boa alfinetada, nem uma boa polémica acerca deste ou daquele tema do dia.

 Mas pode não ser assim tão despiciendo e talvez afinal valha a pena tecer algumas observações.

 Admiro José Guilherme Aguiar, não só pelos extensos conhecimentos que tem sobre o futebol - dentro e fora do terreno de jogo, sobre a arbitragem, acerca dos bastidores do jornalismo e do direito desportivo e do mundo mais escorregadio e viscoso que é o autoritário e burocrático universo da FIFA - mas também pelo indefetível amor ao seu clube, o Futebol Clube do Porto. Tudo isso abona a seu favor e é com os ouvidos bem abertos que me apresto a ouvi-lo quando fala, nas inúmeras mesas redondas e conferências em que participa.

 Mas desculpe-me que lhe diga, respeitável amigo, parece-me que esse amor já lhe tolda a visão e lhe torce a perspetiva, inibindo-o de discernir de forma escorreita e isenta.

 Vem isto a propósito, de algumas considerações que proferiu sobre Eusébio, no último programa da televisão, “O Dia Seguinte.” Disse então que condena Eusébio porque, num dos muitos programas que a TV portuguesa fez, dedicando-lhe bastantes horas em entrevistas e reportagens - assaz carinhosas por sinal - por ocasião do seu 70º aniversário, Eusébio teria confidenciado para todo o país, que num dos últimos jogos da sua carreira, quando representava outras cores, havia-se recusado a marcar golos contra o Benfica, o seu clube do coração e teria mesmo enfrentado o treinador, que teimava em fazê-lo entrar para dentro do campo. Andou pelo campo, talvez meia hora ou menos e fingiu que jogava, completamente desinteressado do jogo.

Eusébio chegou ao Beira-Mar para encerrar a carreira, cansado, espremido e massacrado até ao osso, pois nessa altura só Eusébio valorizava o clube e o país, colocando este mesmo país no mapa do mundo.

 Gostava que as gerações mais novas, que hoje idolatram Cristiano Ronaldo, olhassem para a espetacular carreira de Eusébio e para o seu infindável palmarés desportivo, ao serviço do Benfica e da Seleção Nacional. Dizia Eusébio, há tempos, que quando suava de dores e tinha que entrar em campo infiltrado, restava-lhe apenas morder a toalha, que ainda hoje é o seu fetiche e amuleto da sorte, e fosse o que Deus quisesse. Lembro-lhe que as graves lesões que foi colecionando e as sete (leiam bem, sete) operações aos joelhos, transformaram um desses mesmos joelhos numa invulgar e rara massa disforme que ainda hoje o impedem de andar normalmente como qualquer um de nós é capaz. Tudo de uma forma desinteressada, sem olhar a vantagens, nem contratos, apenas para servir Portugal e o seu clube de sempre, o Benfica.

 Comparar o choro de Rui Costa quando, pela Fiorentina, marcou um golo ao Benfica e chorou, chamar a isso absoluto desportivismo e por outro lado, apelidar de anti-ética a “gaffe” de Eusébio, dizendo que como desportista era sua obrigação marcar, ou por outro lado, não se gabar de o ter feito, é pura redundância e enferma de uma ótica doentia, desculpada apenas pela sua cegueira clubista. Equiparar a habilidade ronceira ao fulgor do génio em movimento, do instinto puro de um dos mais perfeitos matadores que a história do futebol já produziu, é, do meu ponto de vista, ter vistas curtas e apenas alcançar a estreita orla do mediano e do medíocre.

 Se toda esta disponibilidade e sofrimento não lhe dão o direto de emitir humildemente qualquer “blague” mais ou menos espirituosa, sem que os arautos das virtudes e dos bons costumes se apressem a escalpelizar e criticar, então muito mal estamos, que não sabemos reconhecer nem diferenciar o simples e passageiro ídolo, do mito, da verdadeira matéria do mito, de que são feitos os nossos sonhos. Falar de Eusébio é entrar no domínio dos símbolos, do eterno e do incomensurável e dos mitos apenas nos recordamos a sua força e a sua destreza com o arco, no salto ou no pentatlo, como os deuses e os atletas da antiga Atenas.

 Portanto caro amigo, Guilherme Aguiar, não lance sombras onde apenas reside a luz dos grandes astros iluminados e procure que essa luz irradie outros, com o seu exemplo de abnegação e patriotismo, coisa que bastante falta faz hoje em dia.

 J.L.F.


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