Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sábado, 20 de agosto de 2011

Marília dos gatos



Com o passar dos anos, Marília tornara-se uma mulher agreste e insuportável. Casada há vinte e seis longos Outonos, há quinze que adoptara para a sua vida em comum uma fórmula que considerava mágica e julgava ser a solução ideal para todos os males que, como um vírus, nos últimos tempos lhe tinham entrado pelas portas adentro. Pouco ou nada falava com o marido, chegando a comunicar com ele por meio de curtos bilhetes rabiscados à pressa, em toda a espécie de bocados de papel, guardanapos sujos de bâton e restos de comida, papel de embrulho, papel higiénico e até em pedaços de plástico cortados dos sacos das compras, que ia deixando pelo caminho por onde ele passava, o que tornava as palavras incompreensíveis, e agora até começara a usar o sistema de mensagens pela internet, para uma caixa qualquer que ela descobrira, inviabilizando deste modo a mais leve vontade de comunicar. Eram pequenos recados, espaçados nos dias, coisas que não podia deixar de transmitir, ou porque lhes falecera um tio, ou porque algum afilhado se casara, ou quando o carro precisava de revisão, ou se por exemplo era necessário pagar mais pelas obras do condomínio, enfim, um rol de obrigações a que não podiam faltar. Apenas usava a internet quando precisava de guardar uma prova (não fosse aquele malandro, pateta alegre dizer que não sabia, pensava ela), principalmente com assuntos de dinheiro, em que ela arquivava o recado na memória do computador. Fazia isto para afastá-lo de qualquer ideia de conversa, porque há tempos que o passara a considerar o maior erro da sua vida, mas uma vez que não podia descartá-lo, ia aplicar-lhe a dose certa e tornar-lhe a vida um poço de humilhações e desprezo.

A sua vida sexual reduzira-se a zero, viviam não em camas separadas, mas em quartos diferentes e partilhavam a casa apenas por interesse mútuo e o mais cínico comodismo. Não nutriam um pelo outro o mais leve sentimento afectivo, cuja falta se agravava por parte de Marília, que o vigiava e odiava profundamente, pois achava que a sua companhia a levava ao ridículo e a rebaixava, pelo seu aspecto algo desajeitado, forte e pachorrento, o cabelo grosso e enrolado, tipo escova de piaçaba e a quem ela chamava “boi”, sendo que a única ansiedade que o marido lhe provocava, acontecia no final do mês, quando o Oliveira depositava o dinheiro acertado entre eles, na conta comum, para a despesa mensal.
Marília era temente a Deus e fervorosa adepta de todos os santos e anjinhos do catálogo celestial, fazendo-o de uma forma sincera, pois acreditava realmente que eles a salvariam de uma possível tentativa de aproximação do Oliveira. Bloqueara-lhe todas as veleidades e instintos sexuais, fazendo do seu quarto uma fortaleza inexpugnável, fechando a porta por dentro sempre que lá se encontrava.
Marília deslocara o seu afecto e amor para os animais. Tinha verdadeira adoração pelos bichos e escolhera os gatos para amenizar-lhe as terríveis ondas de solidão. Nos últimos anos, trouxera para casa seis machos de criação e uma fêmea siamesa que cobria todos eles na época do cio. Contava Marília para quem a quisesse ouvir, que tinham os nomes dos seis santos padroeiros das principais cidades portuguesas, um para cada dia do Génesis, tendo o sétimo e último dia como o do descanso do Senhor, atribuído ao elemento feminino, um nome de mulher, duma rameira, que só podia ser Madalena, pois como toda a gente sabe, esta fora a prostituta da Bíblia.
Desabafava por vezes, com amigas e conhecidos, que nesta altura da vida em que se encontrava, tão desiludida estava com a raça humana, que olhava para os homens e não via neles, nada, absolutamente nada de bom, nem tinham sequer comparação possível, e estavam muitos planos abaixo, dizia a Marília, de um só pêlo, do mais ínfimo que fosse, de um dos seus adorados bichinhos. Cada vez que olhava para o marido, de tal maneira sentia asco, que se o visse nuzinho em pelota, nem que ele se pintasse todo de ouro em pó, ela alguma vez voltaria a ter alguma intimidade com ele.
Domesticara os dóceis animais e instruíra-os contra o Oliveira, pois quando tinha a porta do quarto aberta para arejar, deixava dois matulões meio selvagens à porta, que se curvavam eriçados com o rabo e as orelhas espetadas, os dentes aguçados e arreganhados, à mostra para o marido.
Certa vez a coisa ficou brava, no dia da morte de Geraldo, o padroeiro de Braga, pois ela, que naquela altura passava por uma crise hormonal e começava a sentir os sintomas da menopausa, irascível e inconstante, logo ali armou um tremendo escarcéu, que foi necessário chamar a polícia porque ela matava-o, acusando-o de envenenamento. Mas a coisa arrefeceu e ela substituiu rapidamente o falecido por outro padroeiro do mesmo nome e cidade, por consequência do mesmo dia da Criação.
Vivia um idílio permanente com os bichos. Chamava-lhe meus bebes, acariciava-lhes ternamente o pêlo centenas de vezes ao dia, no ventre, junto aos órgãos genitais, ou no lombo, eles ronronavam de prazer, puxa-lhes e retesava-lhes o rabo, ora ao Pedro de Évora, ora ao Tomás de Faro, beija-lhes a ponta dos narizes húmidos, dava-lhes a língua a lamber, levantava-os para trás das costas, fazia-os roçar na nuca e dizia-lhes ao ouvido: -ui,ui, hummm, como a mamã vos ama, meu deus! Era um autêntico festival de ternura para com os animais. Marília era verdadeiramente um poço de virtudes, uma carruagem de amor.
De noite saía e começava a caçada. Levava para dentro do Jeep Toyota duas caixas para animais de estimação e ia buscar a mãe, uma respeitável viúva, de idade avançada, que morava dois quarteirões mais à frente. Perto de casa, encostava disfarçadamente o carro junto aos muros de um pequeno descampado frequentado pelos animais vadios da vizinhança, à hora que estes saiam para acasalar, montava os alvéolos para bichos com comida fresca dentro, e ela, caçadora experimentada levantava a pequena ponte levadiça da porta da casinha, amarrava-lhe um cordel e colocava-se então estrategicamente atrás do Jeep, à coca que algum bicho lá entrasse. Mal percebesse que já tinha um gato na armadilha, puxava o cordel que desengatava o travão e zás, lá apanhara mais um. Trazia dois ou três por noite. Durante as horas seguintes ficavam a aguardar no carro, dentro do alvéolo, à espera de desenvolvimentos para a sua situação. Depois, logo que a Marília tivesse tempo levava-os à protectora dos animais que se encarregava de os tratar e encaminhar para o seu devido lugar, para alguma gataria do concelho.
Há algum tempo que o Oliveira desconfiava que a mulher já não funcionava com todos os neurónios; ou a loucura já se havia instalado no seu cérebro ou vinha a caminho em forte galopar. Um dia espreitou para dentro do quarto, numa altura em que os dois siameses se esqueceram de montar guarda à porta da dona e então viu-a, com toda a força da verdade nua e crua. A sua mulher estava ajoelhada frente ao altar improvisado no quarto, com dúzias de santos e igual número de lamparinas acesas, remoía uma reza, uma ladainha bizarra, de mão postas em sinal de oração e rodeada por todos os estimados bichanos da prole. Pedia aos santos por todos eles e benzia-os com o sinal da cruz. No dia seguinte deixou-lhe um e-mail em que se oferecia para levá-la ao padre da freguesia, o padre Firmino, para se confessarem, terem uma conversa os três, e se aconselharem em relação a algum desequilíbrio mental, que achava, ela estaria a sofrer. Perguntariam ao padre se valeria a pena consultarem um psiquiatra ou bastaria mesmo ele, com a ajuda de Deus para resolver a questão.
Foi a última vez (e já haviam passado três anos sobre este acontecimento), que o Oliveira teve a ousadia de sugerir qualquer coisa. Logo após ler o e-mail, Marília ficou em estado de choque, por saber que era aquilo que o marido pensava dela, estupefacta por haver alguém que duvidava da sua sanidade mental e furiosa por ver que ele não lhe tinha ainda o respeito devido e se atrevia a desafiá-la no seu próprio terreno, ele, um homem com menos valor que qualquer dos seus bichinhos queridos. Carregada de fúria e cega de raiva, Marília saiu do quarto, bateu com a porta, dirigiu-se a ele na cozinha e lançou-lhe à cara com todas as letras do mais puro vernáculo:
-Ó meu badamecozito, quem tu julgas que és? Então agora já pensas que eu sou a maluca da tua mãezinha ou quê? Vé lá se quem te manda para o manicómio sou eu, e para a choldra, seu maricas de merda, pedófilo, paneleiro sem vergonha! A partir daí o Oliveira fechou-se num mutismo total, que durou uma semana e só depois de um mês voltou a cumprimentá-la, recebendo apenas como resposta, uma nuvem e argolas de fumo acre na cara.
(continua)
José Luis Ferreira

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