Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Marília dos gatos


(continuação)

O bom do Oliveira, ex-bancário reformado e sindicalista (ainda exercia a actividade remunerada, no sindicato dos banqueiros), não se preocupava nem com santos de altar, nem com animais. Gostaria de ter um cão, um Grand Dannois, um Husky, ou mesmo um Rotweiller, para mostrar toda a sua potência e comando, mas temia o deflagrar da terceira guerra mundial, que aconteceria lá em casa, com toda a certeza, se desembarcasse naquelas terras infestadas de inimigos, algum predador do género canino. Rezava a Deus e confessava-se ao domingo, depois de passar a noite de sábado trancado no quarto a ver filmes pornográficos e sites de orgias romanas, do tempo dos Imperadores, de Nero e Calígula, adaptados ao cinema por realizadores portugueses de vanguarda, gente com ideias próprias e com vontade de fazer coisas novas e originais, com meninas a partir dos 16 aninhos como atrizes, mas que passavam bem por dezoito ou mais, tal era o seu envelhecimento precoce; ou a fazer chamadas para linhas eróticas e telefonemas anónimos para números ao calha, propondo actos obscenos a mulheres da lista telefónica. Nas últimas semanas começara também a corresponder-se, timidamente, envergonhado e aterrorizado, com alguns tarados internacionais em trocas e partilhas de ficheiros encriptados, de jovens menores em poses sensuais, em contas ultra secretas de hard-core.

Marília fazia as refeições na sala, com um ou dois gatos ao colo e a taça de whiskas e leite, em alumínio, recortada com relevos de gatinhos de bigodes farfalhudos, na mesa. Dava-lhes comida pela colher e insistia com eles para comer. O sindicalista comia na cozinha, encolhido numa espécie de mesa minúscula, junto à porta de vidro da varanda, por onde passavam os inúmeros gatos da Marília, o que tornava o ambiente insuportável por estar constantemente a tropeçar nos bichos.
Ao domingo saía com o marido para a missa na igreja da freguesia onde moravam, na Penha da França, para manter as aparências, para calar a boca à má-língua e mostrar ao sr. Padre que nada demais se passava entre eles. Voltavam para casa direitos e concentrados, calados e de rostos fechados, no mesmo carro, a Marília voltava para os gatos e o Oliveira às suas buscas e navegações, pelos mares encapelados da Internet.

Foi num dia do descanso do senhor, o dia de Madalena, a meretriz, que as coisas se precipitaram. Voltaram da missa, eram horas do almoço e como sempre o Oliveira preparou qualquer coisa para comer e foi-se sentar no seu canto habitual, virado para a cozinha, a ver a TV, de costas para a varanda. Marília aguardava na sala que ele acabasse a refeição para se dirigir à cozinha, tratar do seu almoço e dos gatos. Sentou-se com o seu prato preferido de esparguete a carbonara e queijo parmesão ralado. Deliciava-se com o esparguete à italiana, quando sentiu as pernas arranhadas e mordidas por pequenos e pontiagudos incisivos e roçadas por dois novelos de pelo áspero e repulsivo. Por duas ou três vezes suportou as arranhadelas e as bicadas calado. À quarta ou quinta vez sacudiu os bichos com os pés e pontapeou-os violentamente. Os gatos gordos, mantidos e alimentados em parte com o seu dinheiro, reagiram mal e atiraram-se às pernas do Oliveira, aos guinchos e miando histericamente. Marília veio da sala apressada, olhou para a cena caricata do Oliveira a saltar, agarrando-se aos calcanhares e, fora de controlo, desferiu uma bofetada ao marido. Este enervado e desorientado, fora de si, deu-lhe um forte empurrão e uma violenta palmada, atingindo-lhe a zona do ouvido, o que a fez dobrar-se e tropeçar num dos gatos. Ao cair, Marília bateu com a outra têmpora na esquina de mármore do lava-louça, ficando inanimada e prostrada no chão da cozinha. Oliveira olhava aterrorizado para a cena grotesca e imediatamente viu, saindo dos ouvidos da mulher, um fio de sangue vivo e quente, ao mesmo tempo que descia das narinas outro caudal aos borbotões. Vendo a gravidade da situação, Oliveira ligou para o 112 e trinta minutos depois tinha uma equipa de paramédicos em sua casa. Logo de seguida apareceu a polícia, chamada pela emergência médica, pois tratava-se de um caso de violência doméstica. A PSP tirou alguns apontamentos, entrou no quarto dele, mexeu disfarçadamente em algumas coisas, principalmente em fotos, cds e dvds, que estavam ao lado do computador e levou-o para prestar declarações na esquadra do bairro. Marília estava em estado muito grave, ficou internada nos cuidados intensivos no Hospital, com traumatismo crânio encefálico.

Oliveira voltou para casa, deixaram-no voltar, aguardava deliberações da polícia, que organizava o auto de culpa. Descansava no quarto apenas há duas horas, preocupado com este turbilhão de acontecimentos, quando tocaram a campainha e viu uma mulher e um homem apresentarem-lhe o crachá da Polícia Judiciária. Mostraram um mandado de busca e pediram-lhe que os encaminhasse ao quarto.

A mulher sentou-se à secretária e durante uma hora vasculhou todo o disco rígido do computador. Hora e meia depois o Oliveira foi levado para a sede da P.J. para ser interrogado e apresentado ao Juiz de instrução. Dois dias depois o sr. Mário Oliveira foi acusado de homicídio involuntário e uso e difusão de pornografia infantil, tendo ficado em prisão preventiva. Após três meses a aguardar julgamento na prisão, foi finalmente levado à presença do tribunal que o condenou a pena efectiva de doze anos, na Penitenciária de Caxias, nos arredores de Lisboa.
Marília esteve ligada ao oxigénio e em coma profundo durante dois dias, findo os quais não resistiu a uma embolia cerebral e faleceu às 16 horas do segundo dia do seu calendário felino, o de S. João do Porto. No dia da sua morte a gataria em uníssono provocou tal agitação, miando e berrando durante a tarde e a noite que a vizinhança assustada chamou os bombeiros para averiguar o que se passava.

O Sr. Oliveira é hoje um homem amargurado. Os anos de prisão transformaram-no num indivíduo cabisbaixo, resignado, abúlico e obediente; quebraram-lhe a vontade, e o processo de despersonalização quotidiana que havia começado pela convivência com a Marília, atingira durante o longo período de isolamento o ponto máximo, aquilo para que a prisão fora feita, que consiste na perda contínua e sistemática de qualquer resto de orgulho que possa ainda existir no ser humano. Destroçado, com a alma em pedaços e o espírito vagueando por aí, sonhando com os dias iniciais do seu casamento, com épocas passadas de esperança e promessas de amor, Oliveira desaparecia aos poucos, sozinho e envergonhado, não conseguindo mais olhar de frente para o mundo. Já pouco restava do vaidoso empregado bancário, sorridente, solícito e eficiente, às vezes bajulador, que em tempos fora.
Dois anos depois de ter saído da prisão, Oliveira foi encontrado morto, derivado a um ataque cardíaco, numa esquina da Freguesia da sua querida Penha da França, o bairro onde há 65 anos nascera, crescera e vivera toda a vida.

O dia, era o dia do Santo Padroeiro de Lisboa, Santo António, o casamenteiro, o mesmo que um dia abençoara a sua união com Marília, e anos depois o vira morrer na sua cidade, ao entardecer, do primeiro dia da semana sagrada de trabalho do Senhor, na criação da sua obra máxima: a Terra, os Homens e os seus eternos conflitos.
José Luis Ferreira

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