Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Dona Antónia com jindungo e amendoim (crónica e mexericos sobre a vida de uma quitandeira de Luanda)



Para as quitandeiras de Luanda
                                                          
                                  
                                              II Parte

Mas a paixão tem meandros, há alturas que nos cega e nos torna surdos e autistas. Antónia andava enlevada pelo romance e nada nem ninguém a fazia voltar à razão. Mário era o mais novo de três irmãos e o único que tinha escapado a uma vida amarga de prisões e marginalidade. Diziam aqueles que os conheciam, que entre os três, pois devemos incluir o pai que também por lá passou, somadas as penas cumpridas no cárcere, dariam a vida de um homem até aos cinquenta anos. O pai passara dez anos atrás das grades, por roubo de automóveis, posse e negócios com armas furtadas e agressões a um polícia, e os dois irmãos, haviam sido condenados também por longo tempo, por deserção do exército, furto qualificado, proxenetismo, agressões e assaltos à mão armada a residências e roubos de carros novos em stands e garagens. No meio de tudo isto constava que tinha havido uma morte, durante o roubo de uma viatura, diziam alguns, ou teria sido quando se introduziram num apartamento e apareceu a judite, que há muito lhes seguia na peugada, mas ninguém confirmava nada. Um homem havia sido atingido a tiro, mas o corpo desaparecera e nunca mais se soube do rastro. Tratava-se de um vadio, viciado em drogas, bufo, colaborador da Judiciária e da Pide; diziam no meio que tinha sido ele o delator, o canário que cantara e que originara a fuga de informação para a polícia, por isso tinha sido executado. Só o Mário conseguira afastar-se desse caminho e todos reconheciam nele as qualidades de um bom pai e chefe de família. Apenas tinha uma propensão demasiadamente visível para as infidelidades conjugais. Ao conhecer Antónia, foi o mesmo que juntar palha ao fogo e em menos de um fósforo estava ateado o incêndio de repercussões inesperadas.

Encontravam-se em casa dela, a princípio, sempre ao fim do dia, quando Mário fechava a loja; demorava-se em casa da amante cerca de uma hora, entre as sete e as oito e só então voltava para casa, para perto da mulher e dos filhos. Mas pouco tempo depois, passou também a almoçar com a angolana; deixou de comer da lancheira, sozinho. Comia agora comida quente, acabada de fazer, quase sempre um bife, ou os pastelinhos de bacalhau de que ele tanto gostava, acompanhados de uma cerveja Cuca ou duas. Ele levava-lhe vinho português de garrafão e rissóis. Depois repousava nos braços dela, fechados no quarto e trocando mimos e carícias; deitavam-se e espalhavam a roupa pelo chão, suados, enlouquecidos pelo desejo e torturados pelo calor abrasador que penetrava pelo telhado de chapa de zinco, até que o Mário voltava para o trabalho e a Antónia prosseguia com a audição das cassetes do Nelson Ned, do Ouro Negro e do Trio Odemira, que ela adorava e que por essa altura fazia sucesso na metrópole e em Angola. Pedia-lhe às vezes que a levasse a conhecer o “caputo”, que era como ela chamava a Portugal. Eram dias de felicidade genuína. Ele era suficientemente gentil para lhe oferecer de vez em quando uma caixa de bombons, até mesmo vinho do Porto e de noite, para não dar nas vistas, levava-lhe mais revistas e histórias de amor. O arrebatamento de Antónia era tanto, que já se considerava como esposa do Mário e até lhe propunha fugirem os dois para o Congo belga, para Leopoldville. Dizia que aí eles poderiam começar vida nova, talvez iniciassem um negócio de fruta, que era o que ela conhecia melhor. Chegou a sugerir que ele se separasse da mulher e dos filhos, para viverem os dois longe de Angola; lembrava-se também da África do Sul, onde ouvira dizer que haveria melhores condições para os pretos como ela (palavras da Antónia).

Margarida era a mulher do Mário e já estava a par da história toda, da tremenda embrulhada em que o marido se metera. Cogitava há algum tempo como acabar com tudo aquilo, já lhe estava a subir a mostarda ao nariz, estava farta, sentia nojo dele e estava disposta a pôr termo a toda aquela merda (palavras da Margarida). Por várias vezes discutira com o homem e ameaçara tomar medidas sérias, podia ser que o pusesse fora de casa, ou mandasse alguém dar uma valente sova àquela megera. O marido negava tudo, ajoelhava-se aos seus pés, rogava que ela fosse compreensiva e deixasse de duvidar sempre do que ele dizia.                                                                                                       
Há várias semanas que Margarida fazia o mesmo de dia ou de noite. Por quatro ou cinco vezes foi ver, com os seus próprios olhos e confirmar aquilo que já desconfiava. Chamava um táxi à hora do almoço e seguia-o, escondida dentro do carro. Observou-o perfeitamente a entrar e a sair da casa do Cazenga, a beijar a mulata e a abraçá-la, pendurada ao pescoço do seu homem. Preparou um plano, queria dar uma lição àquela galdéria. Nem que tivesse que atirar-se a ela em plena rua, rasgar-lhe a roupa toda e deixá-la envergonhada, em cuecas na estrada. Até o soutien, se ela tivesse suficiente vergonha para o usar, ela lho arrancaria. Queria esbofeteá-la e deixar-lhe um sinal, marcá-la, para que se lembrasse da Margarida e nunca mais tivesse vontade de se meter com homens casados. Comia-lhe o fígado, se fosse preciso! (palavras de Margarida). Era de Viseu, terra do norte de Portugal e falava com os esses assobiados entre os dentes e a língua. Era uma mulher aparentemente cordial e nunca se fez contra ela a mais leve critica ao seu comportamento como cidadã. Mas houve um dia que uma vizinha lhe conheceu o génio, quando, por causa dos filhos, a outra resolveu dar uma bofetada a um dos seus. Margarida veio lá de trás com a mão na anca, descalça e quase despida, pois saíra da cama há pouco, ainda despenteada e descomposta. De tal maneira puxou os cabelos à fulana que a colocou de bruços no chão, arrastando-a dois metros pelo pátio do prédio. Provinha de uma estirpe de vendedoras de peixe do norte, nas lotas de Matosinhos e do mercado do Bolhão, no Porto. Ela própria vendera na praça de Viseu, em rapariga, até aos quinze anos, ajudando a mãe a escamar, a preparar e a pesar os carapaus, a cavala, os robalos e a sardinha, a tirar a tinta e a limpar os chocos. Só aos dezasseis anos acabara a quarta classe, já vivia com o seu primeiro homem - um trolha vindo da aldeia, completamente analfabeto, que não sabia escrever o nome, calceteiro e também peixeiro, aos sábados e domingos - num quarto alugado, uma cave apertada, húmida e negra, sem água, sem banheiro nem sanita. Lavavam-se na torneira do quintal, defecavam à noite, num balde e deitavam as fezes e a urina, num esgoto da rua.

Antónia vivia dias felizes despreocupada, mas sem saber, o seu futuro estava a ser cuidadosamente traçado.
Era uma quinta-feira, um dia igual a tantos outros, mas para Margarida era o único dia de semana pelo qual sentia uma certa aversão. À quinta-feira tudo podia suceder e ela ligava sempre este dia às coisas más. Era um dia ímpar como o dia 13 era ímpar e o sábado e a quarta-feira eram pares e o domingo nem uma coisa nem outra; o domingo situava-se numa zona neutra dos seus sentidos e a segunda-feira era um dia inútil, porque não servia para nada. Para a antiga peixeira do mercado do Bolhão, se um trabalho difícil e ingrato tivesse que ser feito, era mesmo à quinta-feira.
Que ela era maquiavélica não havia dúvida nenhuma, mas ninguém fazia ideia do nível alto de ciúme e raiva que carregava no coração. Nos últimos meses ela andara sub-reptícia, dissimulada, aparecia a horas diferentes em lugares inesperados, tais como armazéns de produtos farmacêuticos, drogarias de venda por grosso e atacado, entre sacos de juta e sarapilheira, a cheirar embalagens de veneno para ratos, a perguntar qual era a quantidade dessas substâncias que um ser humano poderia ingerir sem morrer e, junto a frascos gigantes de produtos corrosivos, ácidos tóxicos e mortais. Procurava informações, lia brochuras, rótulos e folhetos de instruções, sobre as propriedades inflamáveis da gasolina, até quantos graus poderia atingir um corpo em combustão, qual era o tempo de sobrevivência para uma queimadura de 3º grau. Margarida tudo leu e consultou. Estudou também as melhores facas do mercado, as mais longas e cortantes, analisou o poder de corte profundo de uma boa lâmina; comprou mesmo um leitão morto e treinou vezes sem conta, solitária, na cozinha, experimentando que força seria necessária para efetuar uma eficaz penetração com a faca. Chegou a comprar um facalhão para talho, o que causou estranheza ao Mário, que passou a partir daí a não dormir descansado e a pensar seriamente no que se estaria a passar na cabeça da sua antes tão sossegada e pacata mulher.
Decidiu-se pelo ácido sulfúrico e nessa quinta-feira encheu uma garrafa de plástico com dois litros de produto. Sabia que o encontro entre os dois adúlteros se daria por volta das onze da manhã, no quiosque, onde ela ia ler fotonovelas e estar ao pé dele na pouca-vergonha, aos abraços, beijos e risos de satisfação e luxuria. Meteu-se num táxi e seguiu para o Bairro do Cazenga, tendo pedido ao motorista para abrandar, à entrada do povoamento. Estava com os níveis de adrenalina no máximo e trazia nos olhos um brilho invulgar de ferocidade e crueldade. Margarida era uma fera em movimento. Há momentos em que o homem ou a mulher perdem o verniz e o raciocínio lógico próprios da civilização, que os torna seres contidos e moderados e então libertam os seus instintos mais primários, transformando-se numa máquina movida a ódio, raiva e ciúme. Estava tresloucada, fora de si, já não controlava as suas próprias reações. Antes de sair de casa ingerira bastante álcool, café e estimulantes, que lhe aumentaram a sensação de coragem e agora já nada nem ninguém a conseguiria travar.

Viu-a ao longe, de bata curta, acima dos joelhos, chinelas caseiras, lenço na cabeça e cinto largo que lhe moldava a cintura e subia o vestido até um bocado acima dos joelhos. Estava a manusear revistas, falava lá para dentro e ria-se de qualquer coisa, despreocupada mas excitada, notava-se a léguas, pela proximidade do homem. Não viu o marido, ele devia estar a arrumar os jornais ou a contar dinheiro. Margarida disse ao chofer que esperasse, que voltava num minuto. Dirigiu-se decidida para a outra mulher e parou algumas décimas de segundo, um passo à sua frente. Foi então que abriu a garrafa de dois litros de ácido sulfúrico e com toda a força que conseguiu arranjar, vinda do seu interior incandescente, lançou o líquido corrosivo sobre a cara e o corpo de Antónia. A maior parte do ácido atingiu-lhe a cara e o lado esquerdo do tronco. Antónia levou as mãos ao rosto e aos olhos e contorceu-se de dores. Parecia que tinha mergulhado dentro de um vulcão ou de uma panela a ferver. Quanto mais queria minimizar o ardor e a sensação terrível que lhe corroía a face, esfregando e limpando, mais o líquido em ebulição se entranhava na pele. A garrafa fora toda despejada, metodicamente, para cima da pobre mulher.

Margarida voltou a correr descontrolada para dentro do táxi e arrancou a toda a pressa. Mário saiu de dentro do quiosque assustado e, pelo cheiro penetrante e pelos gritos aterrorizados da Antónia percebeu que tinha que levá-la para o hospital. Em pânico, meteu-a no carro e guiou a alta velocidade, buzinando, para o Hospital de S. Paulo de Luanda. Antónia deu entrada nas urgências e verificou-se que tinha queimaduras de 2º grau ao longo do braço, subindo para o pescoço e pavilhão auricular. Mas o caso mais complicado estava na vista, mais exatamente no olho esquerdo que tinha ficado bastante danificado. O líquido penetrara na íris, queimara-lhe a pálbebra, arrancara todo o sobrolho e comera a arcada superciliar.

Mais tarde soube-se que Antónia cegara desse olho. Não havia nada a fazer, não havia tratamentos nem operações que lhe devolvessem a vista. Muitos e muitos meses depois, após internamentos, transplantes e operações plásticas para lhe restituírem a pele da cara e lhe darem um aspeto condizente com o seu antigo e bonito rosto, olhava-se para ela quando não tinha óculos escuros (que lhe davam um ar sinistro), e via-se um olho inexpressivo, branco azulado, baço, sem iris, com a córnea desfeita e uma cicatriz que os enxertos ainda não tinham conseguido desvanecer, a sobressair ao longo da pálpebra até ao osso zigomático. O olho esquerdo era agora um enorme glóbulo fixo, metálico, de uma frieza de aço. Passou a   ser conhecida como a Antónia zarolha, ou simplesmente a zarolha. Sempre muito aberto e desperto, devido à falta da pálpebra, o que víamos era uma esfera inerte, insone, e terrivelmente assustadora.

Não se sabe porquê, Antónia não apresentou queixa pela terrível agressão que sofrera.
Durante os dois anos seguintes ela pouco saiu à rua; sobreviveu à custa dos parcos angolares da pequena venda à porta de casa e de algumas idas à praça do Xamavu, para vender. Por vezes um amigo aparecia, com uma galinha e quiabos, ou peixe e farinha e pedia-lhe que fizesse uma boa muamba, ou uma cangica, para que recordassem outros tempos. Aí Antónia voltava a sorrir, desfazia-se em mimos, puxava das cassetes e do gira-discos e novamente se entretinha com o novo amante para o resto da noite.
Mário voltou logo ao seu negócio dois dias depois, mas agora tinha diariamente a mulher por perto, que ia levá-lo e buscá-lo ao emprego.
Passaram-se mais três longos anos, Antónia e Mário nunca mais se falaram, ele não passava pela sua rua e ela nunca mais se interessou pelo quiosque. Mas no fundo da sua alma, algo borbulhava há muito tempo, uma pressão incomodava-a, não sabia o que era, sentia um mal estar sempre que se lembrava dos últimos cinco anos da sua vida e um choque de placas continentais se formava cada vez com mais força dentro de si e o impacto teria a intensidade dos grandes choques  telúricos.             
Para a sua índole bem-disposta, Antónia achava que não havia nada que não pudesse ser resolvido à mesa, frente a um prato de pirão, ou a uma boa canjica e duas cervejas Cuca. Para ela, ter um amante não era nada demais. Tivera-os toda a vida, assim como era normal um homem ter duas mulheres. Em Angola, junto às classes mais populares, era vulgar um angolano ter duas mulheres e filhos com ambas. Sempre houvera e sempre haveria. Mas já não era tão corriqueiro para uma mulher, diga-se em abono da verdade. Embora estes fossem hábitos e costumes ancestrais da organização tribal angolana, esta sociedade híbrida padecia também dos efeitos, dos tiques e reflexos condicionados da elite machista da metrópole portuguesa. Mas não havia esse sentimento de posse e de propriedade em Antónia, de forma tão vincada como em Margarida. Também não era por adultério que se vingaria de alguém, dessa maneira tão doentia. Lembrava-se do marido, o Zeca, também ter tido duas ou três mulheres, fora do casamento e nunca sentira necessidade de pedir contas a ninguém.
Aos poucos a quitandeira foi recuperando a sua forma de viver, embora mais isolada e fechada com os seus pensamentos. Aquele lado da face doía-lhe e recorria a analgésicos para aliviar-lhe as dores lancinantes que por vezes sentia. O olho danificado estava em constante purga, escorrendo líquidos purulentos e criando infeções constantes. Precisava de combatê-las com pomadas e antibióticos, que lhe custavam pequenas fortunas. A cicatriz na face também requeria cuidados permanentes e todos os anos tivera que ser submetida a duas e por vezes três operações plásticas. Ficara sem dois bons pedaços de pele nas nádegas, que lhe foram enxertados na cara para minimizar as marcas deixadas pelo efeito da corrosão do ácido.
Uma ou duas vezes por mês, Antónia apanhava o velho autocarro para os pobres dos musseques, o autocarro do “munhungo” – termo angolano usado na época e que significava promiscuidade, coisa reles e sórdida, proveniente de contatos sexuais (naquele tempo, em Angola, para os que se lembram, embora não houvesse separação de raças, havia essa nítida diferenciação de classes nos transportes públicos) - coberto de pó, que fazia a linha do Cazenga e descia até á cidade, à procura de medicamentos, na farmácia habitual, ou para levantar as suas pensões, agora também usufruía dessa outra, de invalidez. Quase por acaso, num dia em que escolheu um trajeto diferente, deu de caras com Margarida, que descia de um prédio com o marido, o seu ex-amante de há seis anos. Antónia recuou, para uma viela lateral, eram duas e meia da tarde e ninguém a viu, pois eles logo se meteram no carro e saíram do estacionamento. Era natural que morassem ali perto. Logo que viraram costas, foi ver dentro do prédio as caixas do correio. Lá estava o nome dele na caixa 3ºB. O sangue fervia-lhe nas veias e uma sensação misteriosa percorreu-lhe o corpo. As têmporas latejavam doridas, parecia que estoiravam e todo o lado esquerdo do rosto se contraiu, provocando-lhe dores agudas e insuportáveis. Teve que levar um lenço á vista para secar o líquido viscoso que escorria do olho. O estômago embrulhou-se, sentiu um aperto junto ao baixo-ventre e doeu-lhe a vagina, cujos lábios pulsaram como batidas taquicardíacas num coração cansado.
Voltou para casa e nesse dia foi assaltada por um carrocel de recordações, mágoas e ressentimentos. Pela primeira vez sentiu ódio e um desejo intenso, declarado, de vingança. Sentiu-o crescer, avassalador, vindo de qualquer zona obscura dentro de si; descobriu então que algo muito sombrio nascia nas profundezas da sua alma; como um feto morto e apodrecido, que trouxesse no ventre e tivesse que expulsar, para conseguir sobreviver. Duas garras monstruosas, poderosas, tomaram conta do cérebro de Antónia e qualquer coisa lhe dizia que já não poderia escapar. Nessa tarde, fechada no quarto, teve uma série de pressentimentos e maus presságios. Viu, repetidamente, projeções de animais e bichos fantasmagóricos, de um só olho, também baço, azulado e inexpressivo como o seu, bestas com chifres, bossas e caudas que a ameaçavam como chicotes, a respirarem vapores sulfurosos de enxofre, e amoníaco, sobre ela. À noite, prolongaram-se as visões e febril, teve pesadelos ainda mais sombrios. Num cenário de tormenta, de nuvens pesadas e negras, um clarão iluminou um local, um pátio e viu outras mulheres que fumavam sentadas; fumavam e rezavam, pareceu-lhe, rezavam muito, mas era tudo muito confuso, não percebia nada do que via. Havia também mulheres armadas e escutavam-se vozes, ordens rigorosas para cumprimento de horários inflexíveis. Viu-se a ela própria, que trabalhava, com uma bata indistinta, suja, igual às outras, dentro de paredes e muros muito altos, que chegavam ao céu, tingido de fuligem, como se uma tempestade se aproximasse. Viu o seu futuro, o amanhã, os dias seguintes, cobertos por uma mancha de cinza vulcânica. Havia grades por todo o lado, portões de ferro e ferrolhos que se abriam e fechavam continuamente.
Aquela mulher tinha um olhar fixo e obcecado. Nesse dia não falou com ninguém e o condutor do autocarro achou estranho que ela não o cumprimentasse como habitualmente. Afinal conheciam-se de crianças e ela sentava-se sempre perto dele, a conversar durante o trajeto. Comprou o bilhete e refugiou-se sozinha nos bancos traseiros. Desceu perto do prédio do Mário e deixou-se estar, sentada, junto a uma entrada lateral de frente para o carro. Estava atenta a tudo, tinha a pele a queimar de ardor da febre. Há duas noites que não dormia. Sonâmbula, o sangue fluía aos solavancos, nas artérias e de cada vez que o seu coração bombeava ela sentia as carótidas que pulsavam. Escutava, com a sensibilidade aguda de um animal predador da selva, pronto a lançar o bote sobre a vítima, todos os ruídos e movimentos do prédio. Ouviu nitidamente o elevador que desceu às duas e quinze desse dia. Ouviu as vozes dos dois, que conversavam calmamente e ouviu também perto de si, os saltos dos sapatos daquela mulher que um dia, há muitos anos, lhe despejara um garrafão de ácido para cima da cara, originando a partir daí, toda uma vida de sofrimento e torturas horríveis. Estava de costas para eles. Passaram muito perto de si e foi então que Antónia se dirigiu para Margarida e chamou-a: - Olha…, e não disse mais nada. Quando Margarida se virou, Antónia puxou da faca enorme que escondia entre as roupas e empurrou o braço com quanta força tinha para dentro do abdómen da outra mulher, quase à altura do coração, num movimento ascendente, de baixo para cima. Margarida caiu e logo se formou à sua volta uma poça enorme de sangue pegajoso.
Mais uma vez, pela segunda vez na sua vida, Mário meteu uma mulher no carro e levou-a para o Hospital Maria Pia. Depois de várias horas de trabalho intenso, dos médicos e enfermeiras a tentarem recuperar Margarida, esta faleceu ao cair da noite, com um pulmão perfurado e o coração atingido irremediavelmente pela comprida faca de talho, boa para desmanchar carcaças de animais.
Nunca antes Antónia tinha pensado que as coisas se precipitassem desta forma, nem sequer arquitetara nenhuma vingança ao longo desses seis anos. Antónia foi presa, julgada e condenada a dez anos de prisão por homicídio, tendo o juíz decidido que fora uma ação premeditada. Depois reduziram-lhe a pena, tendo apenas cumprido sete anos na cadeia de Luanda, entre os anos de 1968 e 1975, na Ala C, conhecida como “lugar do pecado,” entre as próprias presidiárias, sendo que a revolução de Abril amnistiou-a desse crime. Mário tornou-se um homem diferente, isolou-se com os filhos e dois anos depois do sucedido voltou para Portugal, para viver perto de familiares afastados, numa aldeia no norte, para os lados de Lamego. Tem agora um pequeno restaurante com fados e guitarradas à noite, vive bem e já pensa em casar novamente.
Ao sair da prisão Antónia sentiu que lhe tiravam um fardo de cima. Tinha uma vaga sensação de altivez e leveza de espírito que antes não tinha. Achava que tinha pago a dívida à sociedade e também achava que fora feita justiça, embora pelas suas próprias mãos. Nunca acreditou que as autoridades policiais prendessem e os juízes condenassem Margarida, uma mulher da sociedade, com roupas caras e amigos em todo o lado. Pensava que, mesmo que apresentasse queixa, era um caso perdido por natureza.  
A mulata era uma mulher que apenas fizera a terceira classe. A sua vida social girava em torno de pessoas de igual instrução, gente simples do povo, gente que nada sabia sobre livros, nem cursos superiores. Mas como mulher de espirito aberto, extrovertida, tinha uma espontaneidade e uma capacidade de criar relacionamentos, afetos e cumplicidades ímpar; sempre se sentiu forte e segura e nunca lhe passou pela cabeça que para ter alguma coisa na vida teria que se oferecer a alguém ou bajular fosse quem fosse. Quando se entregava a um homem (e pela sua vida tinham sido inúmeros, aqueles que com ela se deitaram) fazia-o porque gostava da doce sensação de apertar um corpo viril, de homem, por vezes suado, nunca se interrogando onde começava e onde terminava o que era considerado  socialmente correto. 

Regressou á sua vida habitual, à venda dos quitutes na pequenina bancada, frente ao portão de casa; voltaram também as idas á praça para vender os produtos, aos sábados. Recuperou a alegria de antigamente e há dois anos que vive com um rapaz mais novo. Trouxe-o para sua casa e parece que se dão muito bem. Acabaram-se as festas e almoçaradas ao sábado, agora apenas se reúnem com os amigos dele e alguns indefetíveis dela. A mãe, a avó Francisca faleceu há um ano e para o funeral só o velho amigo que almoçava no quintal apareceu, agora um ancião vergado pela passagem do tempo, com o andar lento e arrastado, vestido de preto, com um fato puído, muito gasto e remendado.
Antónia é agora uma mulher mais madura, mas marcada. O seu caminho foi longo, difícil e conturbado. Uma grande cicatriz invisível traçou dentro dela um trilho acidentado de pedras e duros obstáculos. Nos primeiros anos de prisão, não conseguia olhar para ninguém; escondia a cabeça na almofada, chorava e rezava. Mas sua fé, abalada, vacilou. O seu mundo de convicções ruiu.
Perguntava-se porque é que Deus, aquele em que toda a vida acreditou, sim, porquê que Ele a colocou frente a esta montanha intransponível, tão alta e tão íngreme que ela agora, perdida e desnorteada, não sabia como escalar e a deixou mergulhar nesse mundo de trevas? Como frágil humana não viu Deus quando mais precisou e orou por ele. Era como se tivesse descido ao grau zero da sua condição de mulher. Uma vingança se sobrepôs a outra igual. Algures, a meio da vida, alguém ou algo exterior a ela e ao seu universo quotidiano, a puxou e arrastou para este inferno de julgamentos, polícias e prisões que nunca mais terminavam.
Mas o tempo foi passando e a paz vive agora dentro de si, no seu âmago. Sabe que superou todos os obstáculos e os derrotou, na mais rude prova da vida. Mas também sente que foi graças a ela própria,  à força incomensurável do seu caráter, à enorme vontade de viver e de voltar aos amigos de antigamente, que conseguiu vencer os demónios que durante sete anos se introduziram na sua vida. Não sentia que tinha tido ajuda externa de ninguém, nem de nenhuma força ou entidade superior, nem Deus. Cerrou os dentes e levantou a cabeça, mesmo dentro da cela. Enquanto esperou e orou por Deus, mais se sentiu confundida e desorientada.
Hoje, aos setenta anos, esta mulher, que um dia foi a mais bonita quitandeira de Luanda, filha e neta de escravos, é frequentemente assaltada pelas lembranças mais antigas da sua infância. Revê imagens de memória, como fotografias nítidas de quando era uma menina, vestida com um ligeiro pano rasgado à volta da cintura a tapar-lhe a púbis. Lembra-se dos banhos no rio, quando o seu pai a levava a nadar nas águas calmas e quentes, dos saltos com a criançada e dos primeiros mergulhos nas suas correntes serenas, perto da sanzala pobre de palhotas de barro e capim e de como ela ria e gritava desprendida, de um modo infantil, lá longe, no tempo e no espaço, no Norte de Angola.
No mais ínfimo átomo do seu ser, sabe que só há um caminho a seguir e a estrada à sua frente está agora limpa e em paz, banhada pela luz do dia, tranquila e serena, como os rios da sua infância.
J.L.F.

Nota do autor: Este texto, o meu texto, é uma peça “naif”, um trabalho de artesão rude e em bruto. No entanto, tem a pretensão de se imaginar uma obra literária. Será? Não será? Àqueles que o lerem dou o privilégio de avaliar. Não foi revisto nem corrigido por ninguém, senão por mim próprio. Apenas obedece a duas ou três regras gramaticais básicas e muito simples: a da vírgula, do ponto final e do ponto final parágrafo.
 Desejo apenas que passem uns bons momentos ao lado desta bela quitandeira de Luanda e que conheçam melhor estas mulheres simples, espontâneas e verdadeiras, como verdadeira e sagrada é a terra que um dia as gerou no seu ventre. Assim, longa vida para elas e bem hajam aqueles que sentirem algum afeto e simpatia por esta realidade e por estas velhas histórias do passado.
J.L.F.                            
                                                    
Baía de Luanda
                                                          





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