Afinal sou um homem de sorte. Ainda há coisas na vida que me fazem voltar a acreditar no ser humano, e a D. Maria, o Sr. Alberto e a sua pequena mercearia são uma delas. Eles constituem o pilar fundamental, a grande reserva de valores da minha rua e que me guiaram ao longo destes quase sessenta anos.
Dentro do seu pequeno espaço comercial sou outra vez menino e sinto-me como Oliver Twist num conto de Natal de Dickens.
Já por várias vezes os atraiçoei, escapando-me para as “grandes superfícies”, pensando que daí retiraria vantagens acrescidas, mas rapidamente regresso ao aconchego e à intimidade daquele núcleo familiar.
Detesto as “grandes superfícies,”ou hipermercados, como lhe quiserem chamar. Dentro deles sinto-me fora do meu habitat natural. Espirro mais que o normal, os meus olhos lacrimejam, sou atacado por crises de tosse e ansiedade, o meu coração dispara numa batucada tremenda, numa arritmia descontrolada, e os meus índices de stress atingem o limite suportável. Nunca vejo a hora de me escapar dali para fora. A pior e mais violenta, (mas também a única), atitude que tive para com a minha filha, (quando ela tinha dois anos), aconteceu num hipermercado, quando eu, cansado e stressado pela birra, lhe desferi uma sonora bofetada na sua face de bebe. Penitenciar-me-ei para o resto da vida. (Coisa que ela se deve lembrar, mas que nunca me apontou à cara essa falha).
Os gerentes e a maior parte dos operadores são antipáticos, petulantes, boçais, irritantes, cultivam a ignorância e julgam-se no tecto do mundo por operarem a grua elevatória. À sua frente, já sei, tenho que manter uma atitude defensiva, atacando, pois sei que só reconhecem a linguagem do dinheiro e do poder, do fato e gravata, para mais facilmente exercitarem os seus instintos rastejantes e de invertebrados. Treinei uma voz e uma postura a que eu chamei de “emergência,” para situações de alta pressão. Sebosos e gordurentos, de gravatas estupidamente berrantes, adoptam linguagem estereotipada, repetitiva, julgando impressionar. Com muito gel e pouca cultura, trafegam no mundo pindérico e gentio dos “pimbas” e naquilo que no Brasil chamam de “brega.” Falsamente actualizados, mas de nível, abaixo do subterrâneo mais sujo de NYC, não conhecem mais que o estreito canteiro e o galinheiro lá do quintal, da casinha na aldeia, ou na cidadezinha do interior sertanejo. Em Portugal ouvem megatoneladas de Toni Carreira, no Brasil adoram o seu homólogo Chitãozinho e Choróró , ou o Marcelo Rossi, ostentando ares de D. Juan dos urinóis.
Há uma altura da vida em que temos que fazer escolhas e eu já fiz as minhas. Já pouco preciso para viver e não vivo nem um bocadinho para o consumismo. Nem tão pouco admiro a fancaria e o pechisbeque. Nem a publicidade de mau gosto. Seja da Caipirinha, do Guaraná, da Samsung, da Grundig, da Budweiser, ou dos hipermercados Wall-Mart.
Cada vez dou mais vezes, comigo próprio, sentado a escrever, que é onde liberto a minha imaginação e onde me sinto realmente confortável. Fora as horas em que tenho de trabalhar para viver, é aqui, a escrever, perto dos meus livros, onde gosto de estar.
Mas a mercearia da D. Maria leva-me a ser novamente um menino de calções, perante uma montra de brinquedos. À entrada sou recebido pelo busto do Zé Povinho, que me faz um manguito e me lança à cara: “Queres fiado? Toma”. Agradeço-lhe o gesto, mas acontece que quero mesmo. E mais uma vez o Sr. Alberto faz-me o favor de apontar a despesa a lápis, num caderno à parte. À minha direita, discretamente guardado, está o pequeno banquinho de madeira de sabugueiro, para a D. Maria repousar as suas pernas cansadas, ligeiramente inchadas e envoltas numas grossas meias de descanso. A sua velha bata de trabalho é a mesma, humilde, de há dez anos, mas ela guarda-a com orgulho santificado. E a pequenina estatueta de Nº Sra. de Fátima guardada numa prateleira do canto, faz-me lembrar a minha mãe, também devota da mesma santa.
E não é a primeira vez que, depois de pagar a conta, vamos dividir o pequeno lucro do sr. Alberto para a tasca da esquina, beber um “penalty” e falar do Benfica. Afinal, temos os dois, já, muitos e muitos cabelos brancos e juramos envelhecer com a máxima dignidade.
O cheiro intenso a bacalhau seco, em salmoura ou demolhado, a chouriço preto, a fumeiro e a vinho, a azeitona e azeite dos lagares alentejanos, à mistura com tremoço e couve galega, ainda com o cheiro forte da humidade da terra, do odor do trabalho e do suor, transmitem-me ao cérebro ondas poderosas de bem estar e conforto, e aqui sei que habito o paraíso. Aqui eu me prendo, e sabe-me bem a sua preocupação, quando a D. Maria me pergunta se já casei, ou se já organizei as minhas finanças.
Este é o meu mundo, e nunca a "grande superfície", ou lá o raio que os parta.
Queluz, 9 de Maio de 2011
José Luis Ferreira
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