Há duas semanas que um calor abrasador caíra sobre a cidade de Lisboa e uma atmosfera pesada pendia sobre os seus habitantes obrigando-os a um esforço redobrado. O vento quente vindo do deserto africano empurrava em remoinho grossos novelos de pequenos ramos, troncos e ervas daninhas que cresciam junto dos passeios e ao longo das ruas e avenidas. Grandes quantidades de sacos, restos de comida, jornais e papéis velhos, jaziam junto à porta dos restaurantes e cafés, que na sua maioria estavam fechados devido à escassa clientela. Os trabalhadores da recolha do lixo haviam abandonado os seus empregos por causa da falta de pagamento por parte da Câmara de Lisboa.
Automóveis cobertos por uma espessa camada de pó, serviam agora de abrigo aos grupos de homens e mulheres, que, espoliados das suas casas pelos bancos procuravam tecto seguro onde pernoitar.
Os serviços públicos estavam falidos e o Estado português decretara a bancarrota das Finanças nacionais. O FMI impunha a sua lei, cortava despesas e vendia em hasta pública tudo quanto podia ser alienado pelo governo central. Portugal atravessava a pior crise, desde a bancarrota de 1891. Uma recessão económica agravada por uma depressão histórica estagnava o país remetendo-o para níveis de afundamento preocupantes.
O Parlamento Europeu adoptara novas regras para o financiamento aos países em dificuldade. Subdividia-se agora em duas assembleias, sendo a mais pequena apenas para gerir os fundos de ajuda a esses países não cumpridores. Formara-se assim um novo directório que actuava como entidade fiscalizadora e aconselhadora. Desta forma os grandes como a Alemanha, a França, a Suécia, a Inglaterra, e a Finlãndia constituíam agora o grupo dos poderosos, livres para gerir entre si os grandes negócios e emprestar dinheiro aos mais pequenos conforme as condições que eles ditassem.
O partido SPD (a coligação chefiada pela sra A. Merkl), perdera as eleições e no seu lugar era Herr Hans Dietrich-Vogel o novo chanceller que governava a Alemanha. Vogel pertencia à ala direita do Partido Conservador Alemão e aliara-se ao Partido Radical de extrema direita da Finlãndia, com 20% dos votos no parlamento finlandês. Herr Vogel ganhara as eleições com maioria absoluta e governava no Bundestag a seu belprazer. Uma das primeiras medidas que adoptou quando chegou ao poder foi exigir ao FMI que obrigasse os países devedores a pagar no mais curto espaço de tempo, e até ao último cêntimo todos os juros da dívida do empréstimo aos bancos alemães, o que secava e exauria os países pequenos como Portugal.
A Televisão pública sofria os cortes mais violentes de que havia memória, no seu orçamento, e a política de financiamento à Cultura, aos artistas e agentes culturais estava reduzida ao mínimo.
-Paulo de Carvalho estava agora reformado, consciente da sua letargia, esgotada que estava há muito a sua criatividade musical. Deixara de aparecer em público, pois fora proibido pelo FMI de usar aquele visual colorido e ridículo. Abandonara também os ares de grande músico blasé e convencido, já não falava dos “Sheiks,”e deixara de cantar “Os meninos a volta da fogueira.”
-Simone de Oliveira deixara também de cobrar cachés à TV para cantar “A Desfolhada.” As estações de rádio compreendendo que os tempos eram outros também já não passavam “memórias da outra senhora.”
-Pedro Abrunhosa já não cantava, nem na sua terra natal, o Porto, e também fora proibido pelo FMI de usar os grotescos óculos escuros habituais. Fazia agora apresentação de pratos típicos, ao ar livre, ensinando a cozinhar sarrabulho, cabidela e francesinhas.
-Júlio Isidro reformara-se da RTP, finalmente, e juntara-se com o professor Carvalho da Silva, o pai do satélite português. Juntos exploravam um negócio de venda aviões de aeromodelismo. O FMI obrigava agora a procurar financiamento no sector particular, junto a entidades interessadas, caso o professor Carvalho da Silva ainda sonhasse com satélites.
Estamos agora mais descansados.
-O comendador Joe Berardo terminara a sua mostra de arte no Centro Cultural de Belém e levara a sua exposição e a valiosa colecção para Angola. Isabel dos Santos e a Sonangol patrocinavam uma exposição permanente com o nome de “The J. Berardo Art Exibition”, no mercado do Roque Santeiro em Luanda. As peixeiras e os candongueiros de Luanda recebiam assim um banho de cultura. O FMI chegara à conclusão que não era rentável manter, pagando e sem retorno, tão excelente acervo de obras de arte.
-O Rock in Rio há já três anos que desaparecera de Lisboa por falta de pagamento aos artistas e músicos convidados.
-Carlos do Carmo fora também proibido pelo FMI de imitar Frank Sinatra e também lhe fora exigido, caso pretendesse continuar a cantar o fado, que parasse de adulterá-lo e mexesse na musica nacional o menos possível, deixando de cantar nas formações com piano, contrabaixo ou mesmo bateria.
-Manuela Moura Guedes fora irradiada de vez de todas as televisões no espaço nacional e fazia agora de pivô na nova Tv de Cabo Verde. Julia Pinheiro passara a ser apenas dona de casa.
-Manuel Luis Goucha entrevistava actores gay porno e abrira um restaurante no parque Eduardo VII, de sociedade com o Carlos Malato onde os homens dançavam todos entre eles e de tronco nu.
-O FMI convidara um júri composto por Jay Leno e Woody Allen para virem a Portugal verificar in loco o estado da comédia nacional e avaliar os actores de “stand up comedy,” para saber se realmente se devia continuar a apostar neles. Foram todos chumbados à excepção de Ricardo A. Pereira, a quem foi dada uma oportunidade, mas teria que se desligar dos “Gatos Fedorentos”, iniciar uma carreira a solo e arranjar um bom argumentista.
-Nuno Markl fora convidado a parar de gastar tempo de antena na televisão, deixar de fazer sketches ridículos e deixar também de se imaginar comediante. Jay Leno não viu nele veia artística e aconselhara-o a procurar outra actividade, em que não tivesse que fazer piadas. Woody Allen ouviu durante dez minutos um dos seus programas de rádio e deu nota negativa. Nuno Markl escrevia agora pequenas brochuras para agrafar aos preços dos supermercados Continente e Pingo Doce.
Estamos agora mais descansados.
-O cozinheiro da selecção nacional de futebol deixara de apresentar programas culturais onde falava às vezes de cozinha. Fora proibido pelo FMI de o fazer. Se quisesse agora ainda aparecer na TV teria que se cingir à cozinha e passar a explicar às pessoas como fazer certos pratos da cozinha portuguesa, que é o que ele sabe melhor, que é cozinhar e não entrevistar.
-O chef Henrique Sá Pessoa também fora proibido de fazer programas de cozinha, na TV, tão entediantes. Tinha que arranjar maneira de fazer como os programas do Grande Jamie Oliver, o chef inglês.
-Os "Homens da Luta" continuavam a ganhar os Festivais RTP da Canção. Isto era o resultado lógico da fraca criatividade artística que grassava pelo país. Cantavam agora musica panfletária, onde gabavam e elogiavam o FMI do género: "Tu és o Salvador"," meu Senhor", etc. Faziam parelha com o padre José Luis Borga e o rapaz apresentador de "Portugal no Coração" e mais a Sónia Araújo."
Eu sofrera cortes substanciais no meu salário e já há alguns meses que vinha vendendo algum mobiliário, alguns aparelhos e electrodomésticos. Começara por vender o plasma que me rendeu algum dinheiro. Depois vendi a minha câmara de filmar em vídeo, mas mantive a máquina fotográfica. Depois vendi a aparelhagem de som Technics, mas guardei uma pequena TV, um Video VHS e um pequeno DVD portátil a tiracolo. Podia ligá-los todos, entre si e obter uma imagem e um som razoável. Desliguei todas as lâmpadas do meu pequeno apartamento e apenas tenho uma no quarto sobre a secretária onde escrevo, e um pequeno projector para ler deitado. Despachei um computador/plataforma multimédia, mas tenho comigo um pequeno computador com um processador de texto Word, em que escrevo os meus artigos, sem internet, que também desliguei para poupar.
Guardo alguns livros, alguma música e dois ou três filmes que tenho como meu maior tesouro. Tenho a partitura completa de “West Side Story” dirigida pelo maestro Leonard Bernstein, e a ópera de jazz “Porgy and Bess” de George Gershwin, também dirigida por Leonard Bernstein. Tenho toda a Sinfonia do Novo Mundo dirigida pelo maestro Gustave Dudamel, que me recorda alguém que deixei do outro lado do Atlãntico, a 5ª e a 9ª de Beethoven e a ópera “Tanhauser” de Wagner e acho que estou preparado para a viagem interior. De livros guardo “A Condição Humana” de A. Malraux, e alguns outros menos importantes. De filmes tenho comigo “Il Gattopardo” de L. Visconti, e “F. of Fake”, de Orson Wells e mais dois filmes antigos com a grande Catherinne Hepburn. Também guardo comigo dois clássicos do western de John Ford. Assim sinto-me confortável e protegido.
Ah, guardo também uma pequena Beretta italiana. 6,5mm, envolta num lenço, com uma bala metida no tambor, à espera que a angústia se torne insopurtável.
José Luis Ferreira
Queluz, 20 de Abril de 2011
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