Trópico de Capricórnio

É a linha geográfica imaginária situada abaixo do Equador. Fica localizada a 23º 26' 27'' de Latitude Sul. Atravessa três continentes, onze países e três grandes oceanos.


terça-feira, 27 de julho de 2010

Wikileaks revela milhares de documentos sobre a guerra do Afganistão



  



No Afeganistão, a lei de Murphy é mesmo para levar a sério. As coisas já estavam más - Junho foi o mês mais mortífero para os soldados da Aliança e o general McChrystal, o arquitecto da nova estratégia, disse adeus ao teatro de guerra depois de ter disparado em todas as direcções. Agora ficaram ainda piores com a revelação de mais de 90 mil documentos "secretos" sobre a guerra no Afeganistão. As pilhas de informações secretas ontem publicadas mostram à opinião pública internacional uma história de guerra que não é exactamente igual à que tem vindo a ser contada. Naquela que já é considerada a maior fuga de documentos militares da história americana, a Wikileaks - um site especializado na divulgação de material sensível e que já se tornou o maior pesadelo para governos e empresas - faz revelações com grande impacto do ponto de vista estratégico (como a interferência do Paquistão e do Irão no apoio aos talibãs); militar (como os Estados Unidos terão encoberto o facto de os talibãs terem em seu poder mísseis terra-ar); e mediático (144 operações aliadas fizeram vítimas civis sem nunca terem sido reportadas).

As informações passadas pela Wikileaks vieram ontem escarrapachadas nas manchetes de três jornais internacionais, o "The New York Times", o "The Guardian" e a "Der Spiegel". A escolha não aconteceu por acaso; trata-se de um título do maior contribuinte líquido para a guerra (Estados Unidos), outro do maior contribuinte europeu no esforço de guerra (o Reino Unido) e, por fim, da maior potência europeia (a Alemanha).
Dedo paquistanês e iraniano Grande parte dos documentos foi escrita por oficiais no terreno. E se algumas informações não são passíveis de verificação e levantam mesmo algumas dúvidas (provenientes de informadores pagos), outras há que pouca surpresa causam junto dos analistas. É o caso do envolvimento do Paquistão - a quem Washington passa um cheque de mil milhões de dólares por ano - na guerra, mas do lado dos talibãs. Os serviços secretos paquistaneses, ISI, bem como altos comandos militares de Islamabad terão facilitado sempre a passagem dos grupos rebeldes na porosa fronteira entre os dois países. Mas a lista não fica por ai: a ISI é acusada de ter dado mil motas a um senhor da guerra que posteriormente as utilizou em ataques suicidas e ainda de ter participado na arquitectura numa série de espectaculares atentados contra as figuras políticas afegãs, incluindo o presidente Hamid Karzai.
Também o Irão, de acordo com um relatório das forças da NATO, terá treinado, equipado e financiado os talibãs com o objectivo de aumentar a sua influência no país. 1340 euros foi quanto Teerão alegadamente ofereceu pela cabeça de cada soldado afegão. Outras centenas de documentos sustentam que pode ter sido o Irão a equipar os talibãs com um avançado sistema de mísseis terra-ar cuja existência os militares americanos encobriram para não causar alarme.
Uma guerra de erros Os documentos revelados ontem mostram também como a imagem desta guerra é estranhamente limpa, quando a sua verdadeira face é uma enorme confusão constituída por múltiplos episódios de morte, brutalidade, medo e frieza.
Pela primeira vez é revelada a existência de uma unidade secreta de forças especiais - a "Task Force 373" - criada com o objectivo único de capturar ou assassinar uma lista com mais de dois mil líderes talibãs ou da Al-Qaeda. Por vezes, os alvos foram simplesmente assassinados sem qualquer tentativa de captura. A TS 373 matava tudo o que estivesse no caminho para os seus alvos: homens, mulheres, crianças e até polícias afegãos.
A 11 de Junho de 2007 a unidade foi enviada aos arredores de Jalalabad para capturar ou matar Qarl Ur-Rahman, um comandante talibã. À medida que se aproximavam do alvo, alguém os iluminou com uma tocha, o que provocou uma imediata troca de tiros com um alvo desconhecido, sendo requisitada a intervenção do avião AC-130, que bombardeou a zona. Os norte-americanos descobriram depois que estavam a disparar contra polícias afegãos, sete dos quais morreram e quatro ficaram feridos.
Os erros são vários e estão espalhados pelos documentos, que mostram também como os acontecimentos eram deliberadamente mantidos secretos. Quatro meses depois de terem morto sete crianças dentro de uma madraça, por exemplo, os "TS 373" confrontaram lutadores afegãos numa aldeia chamada Laswanday. Durante o o ataque pediram que fosse bombardeada uma das casas. Resultado: 12 soldados norte-americanos feridos, duas adolescentes e um rapaz de dez anos feridos, uma rapariga morta, uma mulher morta, quatro homens civis mortos, um burro morto, um cão morto, várias galinhas mortas, nenhum inimigo morto, nenhum inimigo ferido.
O presidente Karzai já se tinha queixado que as tropas norte-americanas tratavam as vidas afegãs como "baratas". No total, existem 144 entradas nestes documentos que relatam vários erros que acabaram em tragédias civis, com centenas de mortos, até agora mantidos em segredo. Os erros eram de tal forma habituais que existia mesmo um sistema de compensação para as famílias das vítimas, que podia ir de mantimentos até 1800 euros por cadáver.
Perante as revelações, e depois de tantas promessas de resultados, há pelo menos uma pergunta na cabeça dos decisores políticos: 2010 ainda poderá ser o ano decisivo para a NATO no Afeganistão? Fuga de informação revela verdadeira face de uma guerra de erros, falhas humanas e interferência externa

Publicado no jornal "I" de 27 de Julho de 2010

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