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Quitandeiras de Luanda |
I Parte
Para as quitandeiras de Luanda
Este é um pequeno contributo para que se perceba um bocado melhor alguns costumes de Angola. Ao entrarmos na idade avançada, sentimos a obrigação de contar experiências, certos de que servirão para que se lance alguma luz sobre tudo isto. Se o conseguir, dormirei feliz. Não digo que esta história é verdadeira, nem que apenas se trata de uma ficção. Acredite se quiser. Mas uma coisa vos garanto: os costumes são verdadeiros e ainda hoje existem em Angola. É afinal o que importa.
Dona Antónia era uma mulata de se lhe tirar o chapéu. Conhecia-a no Bairro do Cazenga, em Luanda, numa bela tarde em que fui com o meu amigo, Tony esperar uma certa menina, Mila, que ali morava e lhe preenchia os pensamentos de dia, e os sonhos nas noites inquietas dos seus vinte anos. A caminho do encontro, fui-me deixando para trás, obedecendo às instruções do meu companheiro, isto para que ele pudesse arriscar um pedido, ou segurar-lhe a mão e, com um bocado de sorte, talvez se embrenhassem por aspetos mais íntimos e carinhosos.
Andava-mos há uma boa meia hora e eu, cansado, encostei-me a um daqueles candeeiros de rua, baratos, baixos e raquíticos, típicos dos anos sessenta, nos bairros suburbanos de Luanda.
A rua tinha de nome Dr. Marcelo Caetano e cruzava com a do Dr. Oliveira Salazar. O asfalto ainda não chegara àquelas paragens e o pó levantava-se em qualquer altura, bastando para isso que o vento deixasse escapar um leve suspiro. Qualquer coisa me dizia que, naquela casa, havia todo um mundo desconhecido que eu, ainda não havia contatado. Naquele sítio, em frente à porta, respirava-se um ar diferente, os cheiros multiplicavam-se e eram mais penetrantes. De dentro da pequena casa saía um odor a perfume, do tipo económico, vendido ao litro, ligeiramente agoniante e um ambiente de festa e convívio transpirava cá para fora; as janelas abriam-se, pintadas com a cor da bandeira portuguesa e os lençóis, pendurados para fora, até meio da tarde, espalhavam-se pela pequena janela, empurrando leves cortinas de pano para os lados, deixando ver uma mulher bonita, na casa dos trinta e poucos anos, de pele bronzeada e peitos proeminentes, provocantes, dentro dos generosos decotes de uma bata florida, colorida e transparente.

O portão de madeira, já meio partido e desengonçado, no meio
de dois pilares de cimento toscamente caiados, onde num deles se podia ler o número
da casa pintado à mão e que também prendiam uma grossa rede que delimitava o
pequeno jardim, onde cresciam ervas e capim, com as flores já secas vergadas
pelo calor implacável, constituía a única barreira entre nós e o paraíso, que
se julgava ser aquela casa. Uma pequena banca de doces angolanos, com tabletes
de amendoim torrado e açúcar mascavado caramelizado, docinhos de coco e
bananas, maçarocas assadas, romãs, estava sempre exposta, com um considerável
montinho de moedas, tapadas pela dobra da toalha, que a Dona Antónia vigiava, da
sua janela, assim como aos sumos de goiaba e ananás, e o marufo de cajú, que
sempre rendiam mais uns bons tostões, à proprietária da casa.
Vivia com a mãe, uma velha
surda, que cheirava a cânfora, a óleo de lamparina e velas de oratório, na
devoção da sua santa preferida, a N.ª Sra. da Muxima; espalhava escapulários e
saquinhos de pano, cheios de pós duvidosos e de proveniência desconhecida, muito
usados e surrados, por onde passava. A anciã, magra, ossuda e curvada,
apoiava-se numa bengala de cabo curvo e era tatuada nos braços e na cara; usava
dezenas de pulseiras e cordas nos pulsos e atravessara o tempo das duas guerras
na Europa. Era filha de uma escrava trazida de S. Tomé e ela própria ainda fora
propriedade, durante breves anos, na sua infância, de uma família de roceiros
do norte de Angola. Aos doze anos servira de amante ao capataz da roça que lhe
fizera o primeiro filho. Este morrera sufocado pelo capataz, dois dias depois
de nascer, quando soube que ela dera á luz. Durante o tempo quis, dos Reis, de
seu nome, entrava na pequena cabana e usava-se de Francisca, que dormia sobre
uma esteira, no chão de terra batida, à entrada, perto do quarto dos pais. Nas
noites de bebedeira, dos Reis agredia toda a gente, batia em Francisca e no pai
e por várias vezes abusou também da mãe. Dos Reis era branco e dominava em toda
a roça. Tratava os negros escravos como animais, castigava-os a seu belo prazer,
quando queria e como queria. O seu castigo predileto era amarrar os homens a
uma árvore e mandá-los chicotear por outro escravo, até as costas se transformarem
numa manta de sangue ou até caírem para o lado, desfalecidos e a morrer de tanta tareia.
Alguns anos depois Francisca tivera outra filha, a quem chamara Antónia, de um mestiço de olhos claros, serviçal na roça, que com ela viveu alguns anos, pouco tempo depois da morte de dos Reis. O antigo capataz aparecera morto no bananal, para lá do cafezal, degolado e com as tripas à mostra; durante vários dias os escravos fizeram romaria ao local da morte, tendo alguns levado como recordação restos de roupa e órgãos do seu corpo para ostentarem como recordação nas suas casas. Quando o roceiro soube da morte do capataz, chamou os escravos e reuniu-os a todos no pátio. Perguntou a um por um quem tinha morto o seu homem de confiança. Como ninguém se acusou, ele próprio tirou a velha pistola do coldre e disparou à cabeça de um dos escravos, à queima-roupa.
A avó Francisca tinha o seu quarto numa pequena construção
de madeira, construída ao fundo do quintal e lamentava-se por não ter casa de
banho, tendo que atravessar todo o terreno quando fosse absolutamente
necessário. Só lá saia de dentro para isso e quando o velho se sentava no
banquinho. Então os dois entabulavam um diálogo em língua nativa, o quimbundo e
ela, levantava a voz, puxava pelas lembranças, queria saber de velhos parentes
e amigos, com os pequenos farrapos de memória que ainda lhe restavam, sempre
muito entusiasmada e o velho ria-se e baixava os olhos reverente, mas feliz.

Nesses dias de festa, o leitor de cassetes e o gira-discos
de 45 rotações funcionava sem parar, até tarde da noite, ligados a duas pequenas
e roufenhas colunas de som, penduradas nas traves do estendal da roupa, presas
aos toscos paus e amarradas por arames. A música era variada, principalmente
brasileira, de um ou outro cantor angolano, mas o forte, nessas tardes de
fartura e paixão, era mesmo o Agnaldo Timóteo, o Teixeirinha e o Roberto
Carlos, nos seus temas mais românticos.
Então, depois do
almoço que se prolongava pela tarde dentro, já com os estômagos repletos da
cangica e pirão, aguardavam sentados a dormitar, até que o sol se começasse a
espreguiçar sobre a linha do horizonte e a luz branca se desfizesse,
suavizando-se em tons quentes e esbatidos, bem mais propícios aos afetos; e era
quando apareciam uma ou duas amigas da Antónia, à procura de companhia para o
resto da noite. Já ao escurecer, com o fim do dia saltando para dentro da noite,
tornando-os a todos mais doces e ternos que nunca, levavam mutuamente o camarão
e as rodelas de chouriço e paio à boca, presas por palitos, bebericavam cerveja
pelos mesmos copos e dançavam agarrados, abanando exageradamente as ancas, roçando
os membros eretos e viris nas coxas femininas. Mais tarde, quando ninguém já
quisesse saber de ninguém, deixavam que o Agnaldo Timóteo lançasse para as
estrelas a sua voz poderosa e refugiavam-se pelos cantos escuros do bairro,
apalpando-se e fornicando de pé, entre as paredes das casinhas pobres do bairro
do Cazenga. Até Dona Antónia, desejosa de sexo, abria as grossas pernas,
deitada na nobre cama, que em tempos dividira com o Zeca, o seu marido,
falecido há cinco anos pela tuberculose e fazia amor longamente, com um novo
parceiro, deixando-se depois adormecer pela madrugada, acalmada e saciada como
uma leoa selvagem, no seu mato privativo.
Apresentaram-me a Dona Antónia,
com quem eu a princípio fiz alguma cerimónia, tratando-a por senhora, o que
prontamente desfez, agarrando-me e abraçando-me pelas axilas, beijando-me
sofregamente, nos cantos da boca e encostando demasiado o seu cabelo aos meus ouvidos.
Apresentou-nos a ambos uma outra pessoa, um amigo, que logo no sábado seguinte
me levou a uma festa nessa mesma casa, agora pelo aniversário da dita
senhora.
–“Vais conhecer uma grande
mulher, depois dizes-me como foi, o que achaste dela. Dessas é que eu gosto que
nos ensinam o que é a vida”, disse-me o meu amigo antes de chegarmos a casa
dela.
Antes de entrar deixei duas moedas à entrada e meti ao bolso
um doce de coco e amendoim. Não eramos muitos, talvez quatro ou cinco homens,
para três ou quatro raparigas ansiosas por dançar e agarrarem um parceiro
competente. Almoçamos muamba, que diga-se estava exageradamente picante.
Antónia deitou algumas piadas, sobre a sexualidade masculina, exacerbada pelo
efeito do gindungo, que como ela dizia, nos faria ter mais pau para as garinas.
Se quiséssemos ela tinha “pau de Cabinda”, bastava pedir. Comemos de pé, em
pratos de folha de alumínio. Bebi duas ou três cervejas saídas de uma selha com
gelo, onde metíamos os braços e saiamos de lá com eles molhados.
A noite foi boa e cálida, dançou-se pela madrugada dentro,
os pares colaram-se livremente, abraçaram-se e beijaram-se sob a batuta da
Antónia, que desaparecia de meia em meia hora e voltava sobre-excitada, de
queixo levantado, corada, com as narinas largas procurando o ar, fora daquele
ambiente demasiado quente, com a roupa mexida e os seios maciços arfantes de
ansiedade.
Alguns episódios da vida de Antónia foram-me
contados muitos anos mais tarde, por um acaso excecional, à mesa de uma
cervejaria, num jantar de amigos, nessa mesma cidade de Luanda que me viu
nascer e crescer e que eu palmilhava da Mutamba ao Bairro Operário, não
deixando que ninguém conhecesses a minha cidade melhor do que eu. A conversa
corria, animada e por efeito das cervejas, começou-se a divagar sobre
conhecidos de outros tempos. Foi quando o meu amigo Dino se lembrou dessa casa
particular, afamada, no Cazenga, onde, por coincidência, por lá passamos os
dois, várias vezes. Liguei alguns fios, ao que já sabia e reconstruí o passado,
juntando farrapos e colando esta manta de retalhos. O efeito do tempo
capacita-nos de uma visão mais lúcida sobre as coisas e os fatos. Ou dá-nos a
faculdade de os transformar e pintá-los com novas cores e num novo cenário. De
qualquer forma, Antónia permanece intata no baú das nossas recordações e é o
seu legado de alegria e hábitos
espontâneos de convívio, profundamente arreigada e enraizada
na terra angolana, que até hoje perdura.

Antónia
destacava-se pela pele mais clara e pelos olhos castanhos e alegres, que
pareciam interrogar e sorrir continuamente, mas que sabiam como viver num mundo
difícil, que ela dominava a seu modo, moldando-o à sua vontade e prazer, como
num passeio de domingo, em parte graças à sua beleza selvagem e ao genuíno
magnetismo que exercia sobre os homens e à simplicidade do seu caráter. Naquele
tempo, era hábito as mulheres negras mais velhas fumarem o tabaco em folhas, e colocarem
o morrão aceso dentro da boca. Mas esse não era hábito da Antónia que se ria
das companheiras e dos seus costumes mais caraterísticos. Era uma boa amiga, insuperável
nas horas de diversão, à maneira própria dos angolanos.
Houve um tempo em que se agravaram as dificuldades, logo
após o passamento do marido e lembro-me de ver a sua figura bonita, com o olhar
divertido, os braços fortes e carnudos, sentada junto aos Armazéns do Minho, em
plena Mutamba, na baixa de Luanda, vestida com panos tradicionais, com o seu
aparato de ananases e mangas, arrumadas num largo balaio, na esquina mais
concorrida da cidade. Ao fim do dia arrumava tudo e transportava o que sobrara
na cabeça, até à paragem do autocarro que a levaria até aos confins da cidade,
para a sua casa no bairro do Cazenga. Naquela época todos a conheciam e não
havia quem não lhe comprasse um abacaxi, mamão ou cocos.
Mas em pouco tempo desapareceu da Mutamba e novamente era a
Antónia das almoçaradas ao sábado, do suor dos corpos e das festas que se
prolongavam pela madrugada dentro, dos risos noturnos das mulheres que procuravam
parceiros ao sábado, ansiosas por descarregar a tensão e fazerem os homens
felizes, nas noites quentes da cidade disponível para o prazer. Antónia era uma
mulher curiosa, na sua maneira de vestir. Só usava roupa tradicional quando
exercia a sua profissão de vendedeira de rua, de quitandeira. Nos dias de
festa, usava os seus vestidos e diga-se, transformava-se numa citadina,
descontraída, e arrojava-se nas batas curtas e nas saias provocantes.
Contou-me o Dino este caso, passado com o
vendedor de revistas, com quem a Antónia andava embrulhada durante a semana. De
tanto passar pela casa diariamente, conversar alguns minutos à porta e depois
convidá-la para se dirigir ao seu quiosque para ver as novidades em matéria de
fotonovelas e revistas de atrizes de cinema e do teatro, Antónia começou a
demorar cada dia mais tempo nessas idas à tabacaria. Encostava-se aos
expositores, lia e relia as publicações e as últimas notícias desse mundo de
sonho e romance, que ele depois lhe emprestava. De vez em quando o Mário saía
do balcão, contornava os escaparates e abraçava-a longamente pela cintura, e
vezes houve em que lhe beijou a nuca, enquanto a Antónia lhe afagava o pescoço,
com as mãos papudas e nervosas. Mário era um português a viver em Angola há
muitos anos. Tantos, que ele próprio já perdera a conta. Conhecia Luanda como
ninguém e da sua boca saíam todos os calões e termos correntes das ruas.
Começara a trabalhar muito cedo e aos 35 anos já tinha o seu negócio de
revistas e jornais. Ela andava pelo beicinho por ele, morria de amores pelo
Mário, já não conseguia esconder e ele não desdenhava aquele naco de boa vida.
Mário era casado, tinha dois filhos e sabia-se à boca pequena, no bairro, que
também tinha uma mulher demasiado ciumenta e que se este “affaire” clandestino continuasse,
Antónia teria problemas com a dita senhora.
(continua)
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