
A sua vida sexual reduzira-se a zero, viviam não em camas separadas, mas em quartos diferentes e partilhavam a casa apenas por interesse mútuo e o mais cínico comodismo. Não nutriam um pelo outro o mais leve sentimento afectivo, cuja falta se agravava por parte de Marília, que o vigiava e odiava profundamente, pois achava que a sua companhia a levava ao ridículo e a rebaixava, pelo seu aspecto algo desajeitado, forte e pachorrento, o cabelo grosso e enrolado, tipo escova de piaçaba e a quem ela chamava “boi”, sendo que a única ansiedade que o marido lhe provocava, acontecia no final do mês, quando o Oliveira depositava o dinheiro acertado entre eles, na conta comum, para a despesa mensal.
Marília era temente a Deus e fervorosa adepta de todos os santos e anjinhos do catálogo celestial, fazendo-o de uma forma sincera, pois acreditava realmente que eles a salvariam de uma possível tentativa de aproximação do Oliveira. Bloqueara-lhe todas as veleidades e instintos sexuais, fazendo do seu quarto uma fortaleza inexpugnável, fechando a porta por dentro sempre que lá se encontrava.
Marília deslocara o seu afecto e amor para os animais. Tinha verdadeira adoração pelos bichos e escolhera os gatos para amenizar-lhe as terríveis ondas de solidão. Nos últimos anos, trouxera para casa seis machos de criação e uma fêmea siamesa que cobria todos eles na época do cio. Contava Marília para quem a quisesse ouvir, que tinham os nomes dos seis santos padroeiros das principais cidades portuguesas, um para cada dia do Génesis, tendo o sétimo e último dia como o do descanso do Senhor, atribuído ao elemento feminino, um nome de mulher, duma rameira, que só podia ser Madalena, pois como toda a gente sabe, esta fora a prostituta da Bíblia.
Desabafava por vezes, com amigas e conhecidos, que nesta altura da vida em que se encontrava, tão desiludida estava com a raça humana, que olhava para os homens e não via neles, nada, absolutamente nada de bom, nem tinham sequer comparação possível, e estavam muitos planos abaixo, dizia a Marília, de um só pêlo, do mais ínfimo que fosse, de um dos seus adorados bichinhos. Cada vez que olhava para o marido, de tal maneira sentia asco, que se o visse nuzinho em pelota, nem que ele se pintasse todo de ouro em pó, ela alguma vez voltaria a ter alguma intimidade com ele.
Domesticara os dóceis animais e instruíra-os contra o Oliveira, pois quando tinha a porta do quarto aberta para arejar, deixava dois matulões meio selvagens à porta, que se curvavam eriçados com o rabo e as orelhas espetadas, os dentes aguçados e arreganhados, à mostra para o marido.
Certa vez a coisa ficou brava, no dia da morte de Geraldo, o padroeiro de Braga, pois ela, que naquela altura passava por uma crise hormonal e começava a sentir os sintomas da menopausa, irascível e inconstante, logo ali armou um tremendo escarcéu, que foi necessário chamar a polícia porque ela matava-o, acusando-o de envenenamento. Mas a coisa arrefeceu e ela substituiu rapidamente o falecido por outro padroeiro do mesmo nome e cidade, por consequência do mesmo dia da Criação.
Vivia um idílio permanente com os bichos. Chamava-lhe meus bebes, acariciava-lhes ternamente o pêlo centenas de vezes ao dia, no ventre, junto aos órgãos genitais, ou no lombo, eles ronronavam de prazer, puxa-lhes e retesava-lhes o rabo, ora ao Pedro de Évora, ora ao Tomás de Faro, beija-lhes a ponta dos narizes húmidos, dava-lhes a língua a lamber, levantava-os para trás das costas, fazia-os roçar na nuca e dizia-lhes ao ouvido: -ui,ui, hummm, como a mamã vos ama, meu deus! Era um autêntico festival de ternura para com os animais. Marília era verdadeiramente um poço de virtudes, uma carruagem de amor.
De noite saía e começava a caçada. Levava para dentro do Jeep Toyota duas caixas para animais de estimação e ia buscar a mãe, uma respeitável viúva, de idade avançada, que morava dois quarteirões mais à frente. Perto de casa, encostava disfarçadamente o carro junto aos muros de um pequeno descampado frequentado pelos animais vadios da vizinhança, à hora que estes saiam para acasalar, montava os alvéolos para bichos com comida fresca dentro, e ela, caçadora experimentada levantava a pequena ponte levadiça da porta da casinha, amarrava-lhe um cordel e colocava-se então estrategicamente atrás do Jeep, à coca que algum bicho lá entrasse. Mal percebesse que já tinha um gato na armadilha, puxava o cordel que desengatava o travão e zás, lá apanhara mais um. Trazia dois ou três por noite. Durante as horas seguintes ficavam a aguardar no carro, dentro do alvéolo, à espera de desenvolvimentos para a sua situação. Depois, logo que a Marília tivesse tempo levava-os à protectora dos animais que se encarregava de os tratar e encaminhar para o seu devido lugar, para alguma gataria do concelho.
Há algum tempo que o Oliveira desconfiava que a mulher já não funcionava com todos os neurónios; ou a loucura já se havia instalado no seu cérebro ou vinha a caminho em forte galopar. Um dia espreitou para dentro do quarto, numa altura em que os dois siameses se esqueceram de montar guarda à porta da dona e então viu-a, com toda a força da verdade nua e crua. A sua mulher estava ajoelhada frente ao altar improvisado no quarto, com dúzias de santos e igual número de lamparinas acesas, remoía uma reza, uma ladainha bizarra, de mão postas em sinal de oração e rodeada por todos os estimados bichanos da prole. Pedia aos santos por todos eles e benzia-os com o sinal da cruz. No dia seguinte deixou-lhe um e-mail em que se oferecia para levá-la ao padre da freguesia, o padre Firmino, para se confessarem, terem uma conversa os três, e se aconselharem em relação a algum desequilíbrio mental, que achava, ela estaria a sofrer. Perguntariam ao padre se valeria a pena consultarem um psiquiatra ou bastaria mesmo ele, com a ajuda de Deus para resolver a questão.
Foi a última vez (e já haviam passado três anos sobre este acontecimento), que o Oliveira teve a ousadia de sugerir qualquer coisa. Logo após ler o e-mail, Marília ficou em estado de choque, por saber que era aquilo que o marido pensava dela, estupefacta por haver alguém que duvidava da sua sanidade mental e furiosa por ver que ele não lhe tinha ainda o respeito devido e se atrevia a desafiá-la no seu próprio terreno, ele, um homem com menos valor que qualquer dos seus bichinhos queridos. Carregada de fúria e cega de raiva, Marília saiu do quarto, bateu com a porta, dirigiu-se a ele na cozinha e lançou-lhe à cara com todas as letras do mais puro vernáculo:
-Ó meu badamecozito, quem tu julgas que és? Então agora já pensas que eu sou a maluca da tua mãezinha ou quê? Vé lá se quem te manda para o manicómio sou eu, e para a choldra, seu maricas de merda, pedófilo, paneleiro sem vergonha! A partir daí o Oliveira fechou-se num mutismo total, que durou uma semana e só depois de um mês voltou a cumprimentá-la, recebendo apenas como resposta, uma nuvem e argolas de fumo acre na cara.
(continua)
José Luis Ferreira
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